segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A Igreja e a política no Brasil

Estudos Avançados

Print version ISSN 0103-4014

Estud. av. vol.18 no.52 São Paulo Sept./Dec. 2004

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000300009 

DOSSIÊ RELIGIÕES NO BRASIL

A Igreja Católica e seu papel político no Brasil


Dermi Azevedo



RESUMO
ESTE texto analisa o papel político da Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil, por meio da CNBB, em seu relacionamento com o Estado e com a sociedade civil. Suas bases teóricas inspiram-se na corrente renovadora da Igreja, legitimada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965).

ABSTRACT
THIS TEXT examines the political activity of the brazilian Roman Catholic Church, in front of the social, economic and political reality, represented by the staff of the Brazilian National Bishop's Conference (CNBB). These positions reflects the historical process of changing in the Church.



Introdução
ESTE TEXTO analisa alguns dos componentes políticos da atuação da Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil, doravante aqui chamada de Igreja, diante do Estado e da realidade social, econômica, política e cultural do país.
O estudo do papel da Igreja diante da política e das relações Igreja/Estado na América Latina tem sido uma constante nas Ciências Sociais, de modo particular nas áreas de História, Sociologia e Ciência Política. Em um ensaio escrito em 1970, -"Igreja - Estado: o Catolicismo brasileiro em época de transição", Bruneau destaca a influência de fatores políticos na transformação institucional da Igreja no Brasil. Os intercâmbios entre o Catolicismo e a sociedade, no Brasil, no pós-Segunda Guerra, é analisado por Della Cava, que prioriza a interação da Igreja com a sociedade civil durante o regime de 1964 e o processo de abertura. Dedica especial atenção ao papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como sendo o alicerce do processo de mudanças no papel sociopolítico da Igreja. O conflito com o poder político, sobretudo a partir dos anos de 1950, com auge durante a ditadura, em 1964-1985, teria provocado uma progressiva desintegração institucional da Igreja, que, desde então, tem procurado ampliar a sua influência no país. Löwy, por sua vez, parte da premissa de que, após ter sido, durante séculos, a guardiã mais fiel dos princípios de autoridade, de ordem e de hierarquia, a Igreja - ou uma parte dela - tornou-se, quase sem transição, uma força social crítica, um pólo de oposição aos regimes autoritários e um poder contestador da ordem estabelecida. Esse papel ganhou destaque nas décadas de 1970 e 1980 no confronto entre a instituição católica e alguns Estados governados por ditaduras militares, favorecendo a crise de legitimidade desses regimes. Klaiber, ao analisar a relação entre a Igreja, as ditaduras e a democracia, na América Latina, enfatiza o papel mediador e pacificador da Igreja diante dos conflitos políticos, sobrepondo-se ao papel mais "subversivo" dos religiosos e dos leigos empenhados nas lutas sociais; aponta também as contradições, no interior da Igreja, entre tradicionalistas e progressistas, no contexto da administração de João Paulo II. Apresenta a hipótese de que o papel de vanguarda assumido pela Igreja no Brasil, representado pela CNBB, deve-se à ausência de um grande partido democrático cristão, papel esse que teria sido assumido pelos movimentos católicos leigos.
A continuidade da atuação da Igreja na cena política, depois da queda dos regimes autoritários e na etapa de transição para a democracia é o tema de Smith e Prokopy e outros autores; essa presença é marcada pela intervenção no debate político em torno de três temas: a defesa da justiça social, com a conseqüente crítica às políticas consideradas neoliberais, de desregulamentação dos mercados e de redução dos gastos sociais, aumentando o processo de empobrecimento da maioria dos latino-americanos; a defesa da moral sexual tradicional e a legitimação política e institucional do Catolicismo, diante do Estado, à luz da concorrência das igrejas evangélicas, sobretudo as pentecostais. Para esses autores, a influência da Igreja sobre as elites e os governos é menos eficaz no primeiro ponto e mais eficaz nos dois últimos; diante da população mais pobre, o tema da justiça social é mais bem aceito que os temas de caráter moral e ético. Os paradigmas teóricos no estudo da religião e da política são aprofundados por Cleary ao analisar os processos de mudanças na Igreja latino-americana. Estes paradigmas são a teoria da modernização/secularização, a teoria do sistema-mundo e a teoria crítica. A primeira delas teria predominado sobre as demais, nos estudos a respeito desse tema. A religião torna-se, cada vez mais, um espaço separado da política e centrado em sua própria esfera de atuação. Nessa mesma linha, Bidegaín afirma que, desde os anos de 1950, as análises das Ciências Sociais foram dominadas, primeiro, pelos paradigmas da modernização, do desenvolvimento, do subdesenvolvimento e da dependência e pelas teorias marxistas e neomarxistas e que, em geral, a religião e outros fenômenos culturais foram negados como epifenômenos; foram vistos como vestígios remanescentes de tradições que, inevitável e invariavelmente, declinariam, em seu significado, no processo de modernização. Destaca que a presença da religião no cenário político tornou-se ainda mais importante durante a guerra fria, despertando o interesse de scholars diante dos fenômenos religiosos e, particularmente, diante do Catolicismo progressista e da emergente Teologia da Libertação; passaram também a se interessar pelo tema da religiosidade popular. Para essa autora, a Igreja desempenha um papel destacado diante das crises econômicas e políticas da América Latina e o processo de globalização vem transformando a religião, facilitando uma recomposição do Catolicismo, já que um Estado enfraquecido necessita da presença crescente das organizações religiosas nas políticas públicas. Diversos outros autores têm se dedicado a pesquisas sobre as relações Igreja/ Estado, durante os regimes ditatoriais. É o caso, por exemplo, de Serbin, que, em seu "Secret Dialogues", detalha o funcionamento da diplomacia silenciosa implementada pela Igreja junto aos militares brasileiros, com vistas ao reforço do processo de transição para a democracia. Uma outra hipótese sua é a de que a Igreja no Brasil adquiriu prestígio e poder ao ajudar o país a voltar à democracia, em 1985, e que, agora, ela enfrenta um desafio mais difícil e complexo, ao tentar manter sua influência numa sociedade cada vez mais pluralista, também caracterizada pela competição religiosa, dentro de um cenário democrático.
Quanto ao papel político da hierarquia católica, Rémy preocupa-se em explicar o que chama de lógicas de ação, ou seja, os comportamentos recorrentes, cuja coerência é verificável ex-post, sem que resulte de estratégias conscientes, por meio das quais o ator teria elaborado seus comportamentos a priori. Seu estudo tenta compreender como a hierarquia, a começar pelo Papa, busca tornar-se um ator pertinente no cenário político e social; sua hipótese é a de que a hierarquia da Igreja apóia-se, nesse sentido, mais sobre sua autoridade simbólica e menos sobre sua autoridade disciplinar. Nesta perspectiva, é levada a considerar três elementos do contexto histórico: a crescente importância da sociedade civil diante da esfera política; a secularização e a crise das utopias nacionais. Levine, Mainwaring e Wilde, por sua vez, afirmam que a Igreja latino-americana não é monolítica e que a hierarquia católica toma suas decisões, internas e externas, de acordo com seu contexto nacional específico. Esse contexto inclui realidades diversificadas, tais como os sistemas políticos, a natureza dos problemas sociais, econômicos e políticos e a viabilidade dos recursos humanos e materiais da Igreja. De certo modo, essas diversas abordagens encontram eco e respaldo nas análises da CNBB. A relação entre religião e política, afirma essa a Conferência, sempre foi difícil para a Igreja. Essa relação torna-se hoje mais complicada, devido ao deslocamento da experiência religiosa para o indivíduo, sem a mediação das instituições, dentro da lógica da valorização da subjetividade. As religiões que tiveram a capacidade de reger a vida social, hoje são apenas uma das possíveis fontes de sentido para o mundo e a pessoa. A modernidade obriga, pois, as Igrejas a renunciarem a qualquer pretensão de impor à sociedade seus princípios e normas. Além do notável crescimento, no Brasil, do número de pessoas que declaram não ter religião, o Censo de 2000 mostra o crescimento da população evangélica, que chega hoje a 15,4% do total. Na condição de religião majoritária, a Igreja Católica tem tido dificuldade em acertar o passo, diante desse novo quadro religioso, cultural e político.

Um papel historicamente construído
As análises de conjuntura refletem, também, a autoconsciência histórica da Igreja no Brasil. A legitimidade religiosa e política da Igreja no Brasil é o resultado de um longo processo, que acompanha a própria história do Brasil, desde 1500. O poder estabelecido, no período colonial, promoveu um modelo de Catolicismo, conhecido como Cristandade. Nele, a Igreja era uma instituição subordinada ao Estado e a religião oficial funcionava como instrumento de dominação social, política e cultural. A crise desse modelo é iniciada, simbolicamente, em 1759, com a expulsão dos jesuítas e com a progressiva hegemonia da nova mentalidade racionalista e iluminista. No segundo reinado, em 1840, começa um novo período na história da Igreja no Brasil, conhecido como romanização do Catolicismo, voltado à colocação da Igreja sob as ordens diretas do Papa e não mais como uma instituição vinculada à Coroa luso-brasileira. Esse novo período inclui três fases: a da reforma católica, a da reorganização eclesiástica e a da restauração católica. Na primeira, os bispos reformadores preocupam-se em imprimir ao Catolicismo brasileiro a disciplina do Catolicismo romano, investindo principalmente na formação do clero; a segunda é marcada, na Igreja, pela nova experiência institucional, resultante da sua separação do Estado com a proclamação da República; a terceira, também conhecida como NeoCristandade, inicia-se em 1922, no centenário da Independência e nela, a Igreja opta por atuar, com toda visibilidade possível, na arena política Essa opção implica a colaboração com o Estado, em termos de parceria e de garantia do status quo. Nesse sentido, a Igreja mobiliza seus intelectuais, por meio, entre outras organizações, do Centro D. Vital e o cardeal D. Sebastião Leme funda, no Rio de Janeiro, a Liga Eleitoral Católica. A Constituição de 1934 registra alguns resultados dessa ofensiva, tal como a instituição do ensino religioso nas escolas públicas, a presença de capelães militares nas Forças Armadas e a subvenção estatal para as atividades assistenciais ligadas à Igreja. O processo de mudança de paradigmas na Igreja ganha força a partir dos anos de 1960, sob a influência do Concílio Vaticano II. Nas décadas de 1950 a 1960, a Igreja no Brasil prioriza a questão do desenvolvimento. Ao contrário da posição adotada diante do regime do Estado Novo, de Getúlio Vargas, em que a Igreja assumiu uma posição conciliatória diante do regime de exceção, a CNBB desempenha um papel chave na articulação da sociedade civil, em defesa dos direitos humanos, das liberdades democráticas, da reforma agrária, dos direitos dos trabalhadores e da redemocratização. Durante o Vaticano II, em 1964, a Assembléia Geral da CNBB, realizada em Roma, decide assumir o Planejamento Pastoral como seu instrumento metodológico de renovação (denominado, na época, aggiornamento). Esse processo concretiza-se, no país, por meio do Plano de Pastoral de Conjunto (PPC), fundamentado, por sua vez, na atuação da Ação Católica e na experiência da CNBB, fundada, em 1952, por iniciativa de D. Hélder Câmara. Em todo esse processo, a Igreja tenta integrar-se, cada vez mais, à sociedade civil e aos movimentos sociais. O principal reforço institucional, nessa direção, provém das Conferências Episcopais Latino-Americanas, realizadas em Medellín, Colômbia, em 1968; em Puebla, México em 1979 e em Santo Domingo, República Dominicana, em 1982. A prática gerada por esse processo leva a Igreja a direcionar a sua atuação, na sociedade brasileira, a partir da situação dos pobres e dos excluídos. No início dos anos de 1970, nesta perspectiva, a Igreja concentra sua atuação nas áreas econômica e política, em dois focos: no modelo econômico vigente, que considera elitista e concentrador de rendas e no regime de exceção, diante do qual compromete-se a lutar para o restabelecimento da ordem democrática. Um marco simbólico, nesse sentido, é a publicação, em 1973, de três documentos episcopais: "Ouvi os clamores de meu povo", "Documento do Centro-Oeste", e "Y-Juca-Pirama" - o índio, aquele que deve morrer. A eleição de João Paulo II, em 1978, muda o cenário político da Igreja em todo o mundo, particularmente na América Latina, berço da Teologia da Libertação, a partir do final dos anos de 1960. No entanto, no Brasil, a CNBB mantém sua linha de trabalho e intervém, como ator sociopolítico, diante dos problemas nacionais. Um exemplo disso é a publicação de mais três documentos: "Exigências cristãs de uma ordem política", "Igreja e problemas da terra" e "Solo urbano e ação pastoral". Participa, também, intensamente, sobretudo no fim dos anos de 1970, do processo de transição para a democracia. Neste contexto, a Igreja atua, simultaneamente, como um ator da sociedade civil e da sociedade política, no processo de pressão e de negociação com a arena estatal com vistas ao restabelecimento da plenitude democrática (Stepan, 1987). Um dos principais campos do engajamento social e político da Igreja é o da defesa e promoção dos direitos humanos, e, nessa área, a Igreja, pouco a pouco, vai cedendo parte do seu protagonismo para as entidades da sociedade civil organizada. Dentro da mesma dinâmica, a Igreja participa do processo constituinte, entre 1986 e 1988, e se mobiliza em favor de emendas populares à Constituição, com ênfase para a ética na política e para a implementação de políticas sociais, como condição sine qua non para a estabilidade democrática.

Mudanças no cenário religioso
A Igreja continua sendo a instituição mais confiável para a maioria dos latino-americanos (72%), seguida da televisão (49%) e das Forças Armadas (38%), enquanto somente 24% confiam no Congresso e 21% nos partidos políticos, de acordo com pesquisa, por amostragem, realizada, no segundo semestre de 2001, pela Ong chilena Corporación Latinobarometro, especializada em pesquisas sociais de âmbito continental. No universo pesquisado, de 18.135 pessoas, em dezessete países, apenas 48% dos entrevistados disseram-se satisfeitos com os resultados da democracia, enquanto 51% afirmaram considerar o desenvolvimento econômico como o mais importante que o regime democrático; uma pesquisa semelhante, realizada na Europa Ocidental, revelou que 78% dos cidadãos apóiam a democracia e 53% estão satisfeitos com seus resultados. Na pesquisa referente a 2002, a Latinobarometro registrou um crescimento, para 56%, no apoio dos cidadãos à democracia. Paralelamente, outro fenômeno tem levado a Igreja a rever suas estratégias de atuação religiosa, com conseqüências políticas. Trata-se da mudança do perfil religioso da sociedade brasileira, sobretudo nos últimos trinta anos, dentro de um processo denominado de "pentecostalização brasileira" (Carranza, 2002). De acordo com o IBGE, em 1950, 93,5% da população brasileira declararam-se católicos apostólicos romanos, 3,4%, evangélicos; 1,6% mediúnicos/espiritualistas e 0,8%, de outras religiões, com o mesmo percentual para os sem religião e sem declaração. Vinte anos depois, em 1970, 91,8% disseram-se católicos; 5,2% evangélicos; 1,6% mediúnicos/espiritualistas; 1,0% de outras religiões e 0,8% sem religião e sem declaração. Em 1980, o percentual de católicos caiu para 88,9%; o de evangélicos cresceu para 6,7%; e o de mediúnicos/espiritualistas diminuiu para 1,3%; de outras religiões passou para 1,2% e o dos sem religião para 1,9%. Em 1991, a população católica caiu para 83,0%; a evangélica subiu para 10,0%; e a mediúnica/espiritualistas 1,5%; as outras religiões, diminuíram para 0,4%; e os sem religião para 4,7% e os sem declaração, para 0,4%. Em 2000, declararam-se católicos 73%; evangélicos, 15,4%; mediúnicos/espiritualistas 1,7%; de outras religiões, 1,6%; sem religião, 7,3% e sem declaração, 0,4%. Esses dados do Censo Demográfico definem a identidade religiosa dos declarantes, mas não a sua prática e nem mesmo a sua pertença a uma determinada igreja ou tradição religiosa. Com a modernização da sociedade, sobretudo nas cidades, onde vive a grande maioria da população, a identidade nacional foi separada da identidade católica; desse modo, muitas pessoas, embora batizadas na Igreja, podem declarar-se não católicas, sem se sentirem discriminadas. A relativa queda do percentual de mediúnicos/espiritualistas seria, por sua vez, causada pelo seu sincretismo com o catolicismo. O Estado com a maior perda de católicos e com maior aumento da população autodeclarada sem religião é o Rio de Janeiro; enquanto o Estado com maiores índices de identificação com o Catolicismo são o Piauí, o Ceará, a Paraíba, Alagoas e o Maranhão. Nesse contexto, de acordo com a análise de maio de 2002, os dados mostram que o Brasil continua sendo majoritariamente cristão (católico e evangélico). A novidade é que cresceu em 1,9% para 7,3%, nos últimos vinte anos, o número de brasileiros que se declaram sem religião. Quais os reflexos dessas mudanças na atuação sociopolítica da Igreja? Em primeiro lugar, consolida-se o caráter pluralista e heterogêneo da sociedade brasileira, em que coexistem e convivem pelo menos, 1.200 religiões, de acordo com o IBGE, conforme o Censo de 2000; em segundo lugar; o segmento evangélico, sobretudo o pentecostal, ganha espaço, principalmente no Poder Legislativo, às vezes somando-se e às vezes se separando dos parlamentares da bancada católica. As bancadas evangélica e católica costumam votar juntas em projetos que envolvem questões morais (aborto e casamento de homossexuais, entre outros) e em algumas matérias sociais (saúde, educação, trabalho, moradia, assistência social e em outras que não envolvam interesses específicos de cada igreja).

A CNBB e alguns temas da realidade brasileira
A essência da democracia, de acordo com a CNBB, baseia-se em dois pressupostos: em uma certa homogeneidade social, caracterizada pela inexistência de abismos muito grandes entre as classes sociais; e em um sistema econômico capaz de dar respostas positivas às reivindicações das várias classes, ainda que tais respostas sejam graduais. Para que a democracia funcione, é indispensável que todas as classes sociais disponham de algum recurso de poder, uma vez que "só o poder controla o poder". Deste modo, será possível atenuar os choques entre os vários segmentos da sociedade, permitindo que grupos sociais, com interesses conflitantes, convivam pacificamente, em um mesmo espaço territorial. Uma autêntica democracia só é possível no Estado de Direito, com base no conceito de pessoa humana. Numa democracia real, os cidadãos são sempre os principais controladores das ações governamentais. É difícil e penosa a construção da democracia real.
Todos são atores importantes e não podem estar à margem. A Igreja considera que, para consolidar a democracia representativa, garantindo a governabilidade, é preciso verificar também a composição do Congresso Nacional e as alianças que permitam concretizar os projetos governamentais. O pensamento político da Igreja é refletido, também, no texto-base da Campanha da Fraternidade de 1996 da CNBB, sobre o tema "Fraternidade e Política". Nesse documento, é reafirmada e aplicada ao contexto contemporâneo do Brasil a Doutrina Social da Igreja sobre a política. Essa atividade é definida como "uma mediação social necessária para promover o bem comum". Partindo da concepção aristotélica de que a pessoa humana é, por natureza, um ser político, a CNBB afirma que toda ação ou omissão é uma atitude política e que dela depende a vida dos cidadãos. Apresenta, depois, seu conceito de Política, definida como
o conjunto de ações pelos quais os homens e mulheres buscam uma forma de convivência entre os indivíduos, grupos e nações, que ofereça condições para a realização do bem comum. Do ponto de vista dos meios ou da organização, a política é o exercício do poder e a luta para conquistá-lo.
O texto distingue os conceitos de ação política ("que é o conjunto de atos humanos que possui dimensão pública e que se relaciona com as estruturas de poder de uma sociedade") e de política partidária ("um tipo de ação política específica mediante a qual pessoas e grupos sociais, organizadas em partidos políticos, constroem e defendem projetos para a gestão do Estado e para a organização da sociedade, propondo-se, também, a representar o interesse de diversos grupos e classes, candidatando-se a ser eleitos, pelo voto, para funções legislativas e executivas"). A dimensão político-partidária da ação política é considerada imprescindível, embora tenha limitações e deva ser complementada por outras dimensões sociais, sobretudo as relativas à sociedade civil. Embora as atuais democracias baseiem-se na ação política partidária (sua supressão levaria ao autoritarismo ou totalitarismo), o aperfeiçoamento dos processos democráticos pode levar a que seja modificada, tal como é conhecida hoje, por meio de uma reforma partidária. A Igreja conceitua também cultura política como o "conjunto de convicções e atitudes, normas éticas e opções referentes ao fenômeno político, compartilhadas pelos membros de uma determinada sociedade". A cultura política brasileira é caracterizada pelo desconhecimento do dever cívico de participar da política; pela falta de informação adequada sobre o objeto da política e sobre os aspectos básicos do processo político; distingue, também, entre a cultura política das elites econômicas e políticas, da classe média e das classes empobrecidas. A primeira'é definida como cínico-realista; a segunda é marcada pelo não comprometimento pessoal, pela ânsia de copiar padrões de consumo das elites e pelo temor obsessivo do empobrecimento, assim como pelo voto majoritário nos partidos da ordem. A terceira inclui três subconjuntos: setores politicamente engajados, setores populares de tradição religiosa e setores desorganizados. A política brasileira caracteriza-se, também, pelo clientelismo, fisiologismo, paternalismo e nepotismo, que expressam as relações entre a elite e a massa. Fundamental é a distinção entre a Política como organização da sociedade e a política partidária. É essencial submeter a política e a economia à ética e essa ética deve ser a da solidariedade. A dissociação entre ética e política causa um forte impacto na consciência da população e pode abalar os fundamentos da sociedade. Alegando que a "ética de resultados" é incompatível com a "ética de princípios" a racionalidade meios-fins tem sido tomada como norma de exercício do poder em nome da governabilidade. Outra questão bastante sensível para a opinião pública é a da impunidade, particularmente aquela que salvaguarda os de "colarinho branco". Constata-se uma "grave perda" na "densidade ética" do governo. A análise observa, porém, que, apesar dessa perda de "densidade ética" nos diversos setores da sociedade e da cultura brasileira, particularmente na cultura política, verifica-se, também, o ressurgimento da ética na política, a partir da sociedade civil. O sistema partidário brasileiro é precário e falta coerência entre a atuação dos partidos em nível local e nacional; sob esse'ângulo de análise, os partidos brasileiros classificam-se em dois grandes grupos: os partidos da ordem estabelecida e os da transformação estrutural. Os primeiros não educam, não mobilizam, nem consultam seus eleitores e atuam, quase somente, nos períodos eleitorais; os segundos dependiam, até recentemente, de dogmatismos de uma vertente autoritária do socialismo e ainda não produziram métodos adequados de educação política e de organização das massas populares. A globalização da economia é o fenômeno mais importante no cenário internacional e leva a crescentes desequilíbrios. Esse processo é marcado por contradições. Um trunfo da política econômica do governo é a estabilidade da moeda, mas a Igreja identifica três situações que considera preocupantes: o desequilíbrio fiscal, o déficit da conta corrente e da balança de pagamentos e o desemprego em função do desequilíbrio macro-econômico. Destaca que a falta de um projeto nacional (com o qual a estabilidade econômica não pode ser confundida) agrava essa situação. A desigualdade social e sua cristalização representam o problema mais grave do país. Nenhum dos planos de estabilização da economia foi suficientemente forte para, desde a sua concepção, tomar medidas políticas para a efetiva e prioritária redistribuição da renda. O público e o social ainda carecem de decisões mais firmes e corajosas.

A Igreja e o governo Lula
Num primeiro momento, a vitória de Lula e os demais resultados das eleições das últimas eleições gerais são vistos como uma "virada na história política e social do Brasil", destacando-se a opção à esquerda e o papel dos movimentos sociais nesse processo. Contudo, seria incorreto, conforme a análise, interpretar a votação dos partidos de oposição como uma "explícita adesão" aos projetos que eles representam, embora eles manifestem o "desejo de mudança". O papel da Igreja, nesta dinâmica sociopolítica, tem sido o de parceira e, também, de "parteira" de vários movimentos sociais. Essa mensagem foi transmitida diretamente ao presidente Lula nas visitas que fez à sede da CNBB em Brasília, ainda antes de sua posse, e à Assembléia Geral dessa entidade no dia 1º de maio no Mosteiro de Itaici, em Indaiatuba (SP). Nos cinqüenta anos da CNBB, essa foi a primeira vez em que um Presidente da República encontrou-se com a absoluta maioria do episcopado (305 cardeais, arcebispos e bispos de todo o país, além do Núncio Apostólico, embaixador do Papa no Brasil, D. Lorenzo Baldessari). No encontro reservado com os bispos, Lula ouviu, primeiro, discurso do então presidente da CNBB, D. Jaime Chemello, que destacou a "legítima autonomia da autoridade civil" e a decisão da Igreja de colaborar com o governo "de forma crítica e livre, em defesa da vida, da família e da justiça social". Depois, o Presidente fez o seu discurso, durante uma hora e meia, em que relembrou sua história de vida e em que pediu a colaboração da Igreja para seu mandato. Citou como preocupante a desagregação da juventude e da família. Logo depois, Lula passou a palavra a seus ministros, que resumiram as prioridades de suas pastas. Durante os debates, dez bispos pediram a atenção governamental prioritária para as questões da reforma agrária, da violência urbana, do narcotráfico, da integração nacional, das comunidades indígenas, da Amazônia e do Nordeste e dos direitos humanos. Lula ouviu dos bispos a opinião de que o rumo do seu governo depende da adesão da grande massa popular à sua proposta, ou seja, daquela massa que nunca foi organizada nem politizada, que é desprezada e se despreza a si mesma, que só tem uma consciência política imediata. A eleição foi um passo importante no processo, mas sem a efetiva participação popular não se constitui um povo, no sentido de conjunto de cidadãos e cidadãs. O encaminhamento político das reformas pode indicar os rumos governamentais no atendimento das necessidades dos setores excluídos: a reforma agrária tem, do governo Lula, uma "sinalização positiva", mas ainda não apresentou resultados palpáveis, talvez porque a complexidade dos problemas exija mais tempo. Retomar o crescimento econômico e sair da estagnação é condição necessária (embora não suficiente) para uma efetiva mudança social. Mas, diante da ameaça da inflação que desarticularia a economia e traria a ingovernabilidade, o governo dá prioridade à neutralização daquela ameaça e à conquista da confiança do mercado. Terá o atual governo - pergunta a Igreja - força para operar verdadeira mudança social, ou mais uma vez, o clamor popular por reformas estruturais será abafado por políticas compensatórias? O governo Lula tem-se orientado, questiona a CNBB, mais pela bússola dos indicadores financeiros (que vão bem), do que pelos indicadores sociais (que vão mal).

Conclusões
A análise do papel político da Igreja e da CNBB aponta, em primeiro lugar, para a complexidade da Igreja como instituição dotada de poder tradicional e, ao mesmo tempo, carismático, no sentido weberiano desses tipos ideais. Embora se constitua em fator de poder, a Igreja, diferentemente do passado, não busca exercê-lo de forma direta. E, mesmo que o buscasse, possivelmente não conseguiria, diante da consolidação do processo democrático e do pluralismo religioso, no conjunto da sociedade. Age, porém, de modo a influir na política e nas políticas, com base em sua mensagem religiosa e sociopolítica. Em segundo lugar, esse papel é resultante de todo um processo ideológico e histórico de construção de uma identidade específica e própria da Igreja, no Brasil e na América Latina. É oportuno destacar que a América Latina foi o primeiro continente a se mobilizar para a implementação das reformas eclesiais aprovadas pelo Concílio Vaticano II e que, neste início de século XXI, o continente latino-americano abriga o maior número de católicos no mundo. Embora a direção central do Catolicismo continue na Europa, a Igreja, já há muito tempo, deixou de ser eurocêntrica, pelo menos no ponto de vista sociológico e político. Por outra parte, registra-se o compromisso da Igreja no Brasil com a democracia e com o Estado de Direito e sua opção de apoiar um modelo democrático, politicamente soberano e participativo, economicamente inclusivo e socialmente justo.

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Texto recebido e aceito para publicação em 22 de setembro de 2004.


Dermi Azevedo é mestre e doutorando em Ciência Política pela USP, além de jornalista. Defendeu a dissertação de mestrado As relações entre Igreja e Estado durante a ditadura 1964/1985 e é um dos fundadores do Movimento Nacional de Direitos Humanos/ MNDH.

Cultura - NOVO JORNAL

Natal, 31 de Dezembro de 2012 | Atualizado às 19:12
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Memórias da tortura

O jornalista Dermi Azevedo hoje convive com os reflexos do Mal de Parkinson, que descobriu em 2007 - fala mais pausadamente e também não anda com a mesma velocidade que tinha quando foi torturado duas vezes em São Paulo, entre o final da década de 60 e início de 70.

11:55 15 de Dezembro de 2012


 
Henrique Arruda
DO NOVO JORNAL
Quando olha para trás é até difícil enxergar o ponto de partida de um caminho que ele percorre há mais de 30 anos. As curvas foram muitas, mas nenhuma tão marcante quanto a que começou a atravessar a partir de 1964 com o início da ditadura militar no Brasil.

O jornalista Dermi Azevedo hoje convive com os reflexos do Mal de Parkinson, que descobriu em 2007 - fala mais pausadamente e também não anda com a mesma velocidade que tinha quando foi torturado duas vezes em São Paulo, entre o final da década de 60 e início de 70. Mas nem mesmo os recentes desafios são capazes de calar sua voz ou passar uma borracha na memória.

O desejo de ser jornalista começou quando ainda era um jovem acólito em Currais Novos e o monsenhor Paulo Herôncio de Melo lhe pedia para que, após as missas, Dermi lhe transmitisse os recados ano-tados. “Era eu quem lembrava o monsenhor das obrigações diárias, tudo anotado. A partir disso eu fui pegando gosto pela escrita”, lembra o jornalista, que se diz inspirado pelos colegas que gostam de boas doses de literatura em seus textos.
“Sempre gostei muito de Graciliano Ramos, Rubem Braga, Rachel de Queiroz, Berílo Wanderley, Gabriel Garcia Márquez e todos que vão no campo do ficcionismo”, explica. A TV está ligada em um filme qualquer da Sessão da Tarde enquanto Dermi, repousando no quarto nº 7 do Centro do Trabalhador em Educação, analisa o futuro do jornalismo. Ele acredita que o impresso não vai morrer.

“O hábito de leitura está impregnado há séculos e esse aspecto tátil nunca será superado. Gostamos de ter um objeto nas mãos e não gostamos que tudo já venha mastigado. Quando o audiovisual começou, também se dizia que iria substituir o impresso”, argumenta. Por mais que também esteja “online” e reconheça que a internet traga rapidez, ele condena a falsa impressão de diálogo do meio. “Falta aprofundamento nessa troca que os comentários oferecem. Na minha opinião é um diálogo superficial”, critica.

O garoto natural de Jardim do Seridó, quando chegou à cidade grande, preferiu prestar vestibular para Serviço Social porque o aprofundamento nos direitos humanos era uma meta estipulada desde o início. O ano era 1967. “Entender os direitos e deveres de uma pessoa me iluminou bastante nos trabalhos jornalísticos”, garante.
O curso teve que ser interrompido pouco tempo depois de ter começado. Mas antes de se afastar, Dermi foi eleito o primeiro presidente do Centro Acadêmico Dom Helder Câmara, da Escola de Serviço Social, e iniciou seus trabalhos no movimento estudantil preparando tudo o que fosse necessário para o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, no interior de São Paulo. Foi nesta etapa de sua vida que o jornalista tomou ainda mais consciência de seu papel na luta a favor de uma “sociedade livre, democrática e soberana”.

O congresso da UNE em São Paulo reservaria algu-mas surpresas, sendo a principal delas a sua primeira prisão. Ao chegar a Congonhas, ele e seus companheiros foram levados vendados para o sítio onde iria ser realizado o congresso com mais de 600 estudantes, como ele também conta nas páginas de “Travessias Torturadas”, livro que fez questão de lançar em Natal na última sexta-feira, 14. “O avião não tinha pressurização, então chegamos todos surdos”, recorda, dando um sorriso nostálgico.

A manhã estava fria e chuvosa, pelo que se lembra, quando a Força Pública e os demais órgãos de repressão invadiram o congresso e leva-ram os estudantes em cima de caminhões para o presídio Tiradentes, no centro velho de São Paulo. “Foi bem menos traumática do que minhas outras prisões porque éramos vários, eles nem sabiam direito o que fazer com tantos estudantes. Fiquei em uma cela com 18 colegas, onde só cabiam nove. A gente se revezava para dormir. En-quanto um grupo deitava, o outro ficava em pé”, conta.

Em 69 ele retorna à Natal, mas para a sua segurança decide se exilar no Chile, onde existia um governo socialista. E assim ele cruzou a fronteira clandestinamente disfarçado de monge. A permanência no estrangeiro durou até 1971, quando Dermi não aguentou mais ficar distante de sua realidade política e voltou ao Brasil.

Como não queria abandonar o ofício de jornalista profissional, mesmo tendo que medir bem todas as palavras que fosse usar, Dermi começou a trabalhar nas redações do “Última Hora”, dirigido por Samuel Weiner, mas ao longo da carreira acumulou no currículo também a passagem pelas redações do Estadão, Folha de São Paulo e Jornal da Tarde.

Sobre os tempos que passou nas redações potiguares, lembra que sua geração de jornalistas era ativa, que fundou, por exemplo, a Cooperativa dos Jornalistas de Natal, para diminuir as “brigas” entre os homens da notícia e os diagramadores.

“Não era diferente do jornalismo que se faz hoje, mas o espírito investigativo era maior. Dava-se mais valor à reportagem”, compara. “A minha geração é a mesma desses antigões que hoje em dia estão aí na imprensa potiguar. Falo de Vicente Serejo, Albimar Furtado, Jomar Morais, Cassiano Arruda Câmara e tantos outros”, completa.

Por aqui passou pela Tribuna do Norte e pelo Diário de Natal. Das matérias que fez, lembra muito de duas. “Uma sobre a utilização de laparoscopia para a esterilização de mulheres pobres e outra que, na verdade, foi uma série sobre a mineração no RN, mostrando como o subsolo era explorado retirando tungstênio para a indústria armamentista e como essas empresas pagavam pessimamente os funcionários”, recorda.
DITADURAS SÃO IGUAIS
Quatorze de janeiro de 1974. Era fim de tarde e ele ainda estava na redação da Folha de S. Paulo quando foi preso e levado ao DEOPS. “Foram duas prisões neste ano e entre elas eu estava lendo Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos e isso me marcou muito porque achei muito chocante comparar o que ele viveu no Estado Novo com o que eu estava vivendo anos depois. Ou seja, toda ditadura é igual”, afirma.
Pressionado para con-fessar sua suposta filiação ao PC do B, Dermi foi colocado no Pau de Arara, levou choque nos órgãos genitais, tapas nos ouvidos (o que eles chamavam de telefone) e o que mais lhe impressionava durante toda a situação era como ele poderia ser tratado como um bandido. “É uma sensação muito estranha ser preso. Eu ouvia nas conversas eles falando ‘O elemento já está preso’ e me perguntava como eu poderia ser um elemento, como poderia ser inimigo. Inimigo de quem?”, lembra.

Na segunda vez que lhe prenderam, ainda em 74, o motivo foi um álbum que ele montou para sua esposa contendo diversas fotos de família e de ícones da época. “Tinha muita gente e eles me interrogaram sobre cada personagem do álbum, desde Che Guevara até Fidel Castro. Nunca mais eu vi o álbum depois disso, ou ele sumiu, ou está escondido em algum lugar com alguém”, conta.

Além de receber a dor da tortura, Dermi carrega até hoje a dor maior de saber que sua família também foi torturada, já que a ditadura também pegou sua esposa e seu filho de apenas 1 ano e oito meses na época. “Minha esposa sofreu praticamente os mesmos traumas que eu; e meu filho eles jogaram no chão. Até hoje ele carrega no rosto as sequelas do espancamento”, diz.

“O senhor aceitaria passar por tudo isso novamente hoje em dia?”, questiona o repórter após uma pequena pausa na conversa. “Passaria pelas mesmas situações para garantir uma vida mais digna para todos porque isso nunca me silenciou e nunca deixei me silenciar. Pretendo até o final da minha vida não ficar calado diante uma situação de injustiça”, responde.
UMA VIDA DE NOTÍCIA
Se pudesse noticiar al-guma coisa que ele não teve a oportunidade, Dermi escolhe dois fatos “Pode inventar tam-bém alguma coisa que não aconteceu, né?”, pergunta. “Pode”, aceita o repórter. Para começar, ele diz que gostaria de ter noticiado a permanência do Papa João Paulo I no pontífice, porque, segundo Dermi, João Paulo I estava prestes a fazer revoluções profundas no catolicismo.

“Como, por exemplo, aceitar a ordenação de mulheres, acabar com o celibato, e há quem diga ainda que ele iria redimir Martinho Lutero. Gostaria de ter noticiado que ele permaneceu e promoveu essas mudanças, mas infelizmente morreu antes ou, como dizem também, foi vítima de um complô dentro do próprio Vaticano”, defende.
A segunda notícia que gostaria de dar é o fim da impunidade para pessoas desaparecidas na época da ditadura. “Gostaria que todos esses arquivos fossem abertos”, diz o jornalista acreditando também que os casos não ficarão para sempre sem uma solução. Para isso, a Comissão Nacional da Verdade, empossada pela presidente Dilma em maio deste ano, será essencial.

Hoje Dermi Azevedo é aposentado por ter adquirido mal de Parkinson e também por ser anistiado político, mas mesmo assim não pretende se afastar do jornalismo. Agora se dedica aos livros que pretende escrever até o final da carreira. O primeiro foi lançado na última sexta-feira, 14 em Natal. “Travessias Torturadas” conta detalhes do que sofreu com a ditadura militar.

Os próximos provavel-mente serão “Direitos Humanos: Teoria e Prática” e uma compilação, ainda sem nome, de suas melhores matérias publicadas ao longo da carreira. “Difícil é saber o que botar né? Mas já estou organizando”, garante. Sobre o livro lançado em Natal, Dermi garante que não sofreu ao relembrar de toda a história, só teve dificuldade mesmo para saber até que ponto contar.

Filho de Dermi Azevedo ainda sofre as agressões sofridas no DEOPS.

Comportamento
Isto É -  N° Edição:  2099 |  29.Jan.10 - 21:00 |  Atualizado em 31.Dez.12 - 18:34

"A ditadura não acabou"

Filho de militantes de esquerda, Carlos Alexandre foi preso e torturado quando era bebê. Cresceu agressivo e isolado. Aos 37 anos, ele ainda sente os efeitos dos anos de chumbo: vive recluso, sem trabalho nem amigos - sofre de fobia social

Solange Azevedo

No vídeo abaixo você confere os depoimentos de Dermi Azevedo, pai de Carlos Alexandre
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Carlos Alexandre Azevedo, 37 anos, torturado quando era bebê.
Ele tem olhos de aflição e feições de dor. Suas palavras saem cadenciadas, são quase sussurros. “Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura”, diz. “Os meus pais foram presos e eu fui usado para pressioná-los.” Carlos Alexandre Azevedo tinha 1 ano e 8 meses quando policiais invadiram a casa da família, na zona sul de São Paulo, e o levaram para a sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops). Era 15 de janeiro de 1974. Bem armados e truculentos, os agentes da repressão o encontraram na companhia da babá – uma moça de origem nordestina conhecida como Joana. Chegaram dando ordens. Exigiram que os dois permanecessem imóveis no sofá. Apenas Joana obedeceu. Como castigo pelo choro persistente, Carlos Alexandre levou uma bofetada tão forte que acabou com os lábios cortados. Foram mais de 15 horas de agonia. O drama de Carlos Alexandre – um dos mais surpreendentes dos anos de chumbo – veio à tona no momento em que o governo brasileiro discute a criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar casos de tortura, sequestros, desaparecimentos e violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985). Carlos Alexandre decidiu revelar sua história, com exclusividade, à ISTOÉ depois que o seu processo de anistia foi julgado pelo Ministério da Justiça. No dia 13 de janeiro, ele foi declarado “anistiado político”. Deve receber uma indenização de R$ 100 mil por ter sido vítima dos militares. “Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil. No julgamento, em Brasília, me senti compreendido.
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Carlos aos 3 anos, com os pais
As pessoas sabiam que o que eu vivi foi verdade”, alega. “A indenização não vai apagar nada do que aconteceu na minha vida. Mas a anistia é o reconhecimento oficial de que o Estado falhou comigo. Para mim, a ditadura não acabou. Até hoje sofro os seus efeitos. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social.” Fragmentos da vida de Carlos Alexandre, hoje com 37 anos, estão guardados  na memória do pai, o jornalistae cientista político Dermi Azevedo. Outros ficaram entre as lembranças da mãe, a pedagoga Darcy Andozia. “Minha família sempre foi muito retraída, sem diálogo. Não costumávamos falar sobre tortura. Esse assunto sempre foi tabu entre nós”, conta Carlos Alexandre. Ele descobriu o próprio passado ao remexer em gavetas, aos 10 ou 11 anos de idade. Misturado a fotografias antigas e a uma porção de papéis, encontrou o desenho de uma vaquinha, conhecida na época por simbolizar a “esperança”, com o seguinte recado: “Deops 1974: Quando você ficar mais velho, seus pais vão te contar a sua história.” Parte do sofrimento da infância lhe foi revelada pela mãe. “Cacá apanhou porque estava chorando de fome. Os policiais falavam que, naquela idade, ele já era doutrinado e perigoso”, lamenta Darcy. Presas políticas disseram ao pai que o menino fora torturado no Deops. “Meses depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vítima de choques elétricos e outras sevícias. Ele foi jogado no chão e bateu a cabeça”, afirma Dermi. “Maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade.” Quando os agentes levaram Carlos Alexandre e a babá, Darcy não estava em casa – seria trancafiada no Deops horas depois.
“Até hoje sofro os efeitos da ditadura. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social”  
Ela havia saído cedo em busca de ajuda para o marido preso. Aquela era a segunda invasão à residência dos Azevedo. Na noite anterior, policiais vasculharam todos os cômodos em busca de “material subversivo”. Encontraram um livro intitulado “Educação Moral e Cívica & Escalada Fascista no Brasil” e o consideraram uma injúria às autoridades. Dermi, Darcy e a educadora Maria Nilde Mascellani foram processados – e absolvidos – sob a acusação de tentar difamar o Estado brasileiro. Dermi e Darcy eram ligados aos padres dominicanos e a uma das principais vozes que lutavam contra a ditadura, o então cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Faziam parte da retaguarda do movimento de resistência – abrigavam militantes que se preparavam para embarcar para o Exterior. O período de cárcere foi tenso e doloroso. Darcy permaneceu mais de 40 dias na cadeia. Foi pressionada psicologicamente, mas não sofreu violência física. Dermi ficou cerca de quatro meses no xadrez. Apanhou muito. Quando já não suportava mais a dor, invocava o nome d’Ele: “Ai, meu Deus. Meu Deus.” Enquanto Darcy esteve atrás das grades, Carlos Alexandre foi cuidado pelos avós – e continuou a sofrer as consequências de escolhas que não foram suas. “Em certos momentos, tive raiva porque meus pais expuseram os filhos. Mas depois senti orgulho porque eles lutaram contra os abusos dos militares e fazem parte da história do Brasil”, diz. Carlos Alexandre padece de um transtorno chamado pela ciência de fobia social: um medo excessivo e persistente de se expor à avaliação alheia. Quem tem esse distúrbio se esquiva sistematicamente de contatos interpessoais – principalmente com pessoas do sexo oposto, desconhecidas ou autoridades – porque teme ser humilhado ou rejeitado.
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Dermi Azevedo, jornalista, pai de Carlos Alexandre, em frente ao prédio onde funcionava o Deops
O diagnóstico foi mencionado pela psicóloga Ana Maria Falvino, que tratou de Carlos Alexandre, num documento encaminhado à Comissão de Anistia. No texto, a psicóloga detalha a evolução do transtorno no paciente e situações relatadas pela família Azevedo. Mas não afirma categoricamente que o problema dele é consequência direta de tortura.  As situações vividas por CarlosAlexandre, no entanto, o inserem no grupo de risco descrito pela medicina. De acordo com o médico Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de  Transtornos de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, cerca de 30% dos casos de fobia social têm origem genética. Os outros  70% se devem a vivências complexas.Os pais são o primeiro modelo para a criança. Observar como eles lidam com  as adversidades, se enxergam o ambiente social como fonte de prazer e alegria ou como algo desconfortável e ameaçador, se são tímidos ou têm muitos amigos, é de extrema importância para o bom desenvolvimento infantil. Bernik afirma que crianças provocadas e maltratadas por colegas e que vivem experiências marcantes de rejeição e de sofrimento são mais suscetíveis à fobia social na vida adulta. Logo que Dermi deixou a prisão, em maio de 1974, a família toda se mudou para a sua terra natal, o Rio Grande do Norte. Primeiro foi para  Currais Novos, no interior do Estado. Em seguida para a capital, Natal. A violência psicológica e as agressões físicas – como as intermináveis sessões no pau de arara e os repetidos golpes na cabeça, chamados nos porões da ditadura de “telefone” – derrubaram Dermi. Durante um bom período, ele não foi capaz sequer de sair da cama. Passava o tempo todo coberto. Teve crises de paranoia e medo de tudo. Não podia trabalhar. O aperto financeiro desestabilizava ainda mais a família. Ele foi recuperando devagar a coragem de se levantar, ir à esquina, andar sozinho.
“Meses depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vÍtima de choques elétricos e outras sevÍcias. ele foi jogado no chão e bateu a cabeça. maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade”
“Dermi não se destruiu. Transformou o trauma numa batalha pela vida e continua lutando pela dignidade humana”,  avalia a psicanalista Miriam Schnaiderman, codiretora do documentário “Sobreviventes”, que narra experiências de pessoas que passaram por situações-limite. Enquanto Dermi tentava se recuperar, Darcy tinha de se desdobrar para dar conta da casa e dos filhos – do primogênito e de dois meninos que vieram depois. Carlos Alexandre demonstrou os primeiros sinais de isolamento já em Currais Novos. Não interagia comoutras crianças, tornou-se agressivo e andava sempre triste. Às vezes, acordava agitado procurando pela mãe: “Mamãe, onde é o barulho do trem?” A sede do Deops, onde ele esteve detido durante algumas horas, era na região da Estação da Luz. De lá, dava para ouvir o som do vai e vem das composições. Apesar de a família estar longe de São Paulo, onde a perseguição seria mais severa, os Azevedo eram constantemente vigiados pelos militares locais e discriminados pela vizinhança. Viviam sendo apontados como “bandidos”, “terroristas” e tratados como se tivessem alguma doença contagiosa. Carlos Alexandre cresceu sob intensa pressão, testemunhando as crises do pai e a inquietude da mãe. Chorava para não ir à escola. Não suportava ficar distante dos pais. A instabilidade e a dinâmica familiar contribuíram para aumentar o afastamento de Carlos Alexandre. “A perseguição afetou os outros filhos, mas não de maneira tão intensa quanto ele”, relata Dermi. As mudanças de casa e de cidade eram constantes a ponto de os meninos não serem capazes de criar laços de amizade ou se adaptar completamente à escola.
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Darcy Andozia, pedagoga aposentada, mãe de Carlos Alexandre
O único período de relativa calmaria e imobilidade durou cerca de quatro anos – entre 1981 e o início de 1985, quando os Azevedo moraram em Piracicaba, no interior paulista. A filha mais nova nasceu lá. Todos eram respeitados. Darcy e Dermi tinham vínculo com uma universidade do município – já não eram encarados como “bandidos” ou “terroristas”, mas como intelectuais. E a ditadura militar caminhava para o fim. A saída de Piracicaba foi traumática para Carlos Alexandre. “Era o único lugar em que eu tinha amigos. Foi aí que me isolei de vez. Parei de estudar e me tranquei em casa”, lembra. Carlos Alexandre tinha acabado de entrar na adolescência. No interior paulista, costumava brincar na rua, jogar bola e frequentar festinhas vestindo short e camiseta. Não se importava muito com o figurino. Os novos desafios da cidade grande o fizeram submergir no medo.  Ele já não era mais convidado para festas, se sentia incapaz de dançar com as meninas e apanhava dos garotos cotidianamente. Quando tentava revidar, era pior. Apanhava mais. “Por ser introvertido, não ser muito bonito nem me vestir como eles, eu era humilhado e vivia sendo alvo de chacotas”, afirma. Carlos Alexandre sucumbiu à crueldade adolescente e se enterrou nas próprias fragilidades. Afirma ter passado cerca de sete anos (dos 13 aos 20) praticamente sem sair de casa. Tentou frequentar a escola. Não conseguiu. Nos momentos de nervosismo intenso, quebrava tudo o que encontrasse pela frente. Engordou 40 quilos em seis meses. Tentou o suicídio “algumas vezes”. Quando decidiu enfrentar o medo da rua, trabalhou como auxiliar de escritório.
“O meu filho apanhou dos policiais do deops porque estava chorando de fome. levou um tapa tão forte que cortou os lábios"
Ficou um ano no emprego – seu recorde com carteira assinada. Depois atuou como operador de microcomputador e diagramador. Interagir era tão penoso que Carlos Alexandre pediu demissão e foi demitido diversas vezes porque não suportava conviver com os colegas de trabalho. “As pessoas começavam a perguntar da minha vida: o que eu fazia, se tinha estudado, se tinha namorada, quem eu era, aonde eu ia. Acabava ficando um clima ruim”, conta. “Estar no meio de muitas pessoas é muito cansativo para mim. Falar também. Sair de casa e sentar num bar é um incômodo muito grande. Mas hoje já não entro em pânico porque estou em tratamento.” Um ou dois amigos visitam Carlos Alexandre esporadicamente. Vão ao apartamento que ele divide com a mãe na região central de São Paulo. Seus outros – raros – amigos são todos virtuais. Ao optar pela rede, ele se protege da sociedade. “Quando rompo o ciclo vicioso, consigo até ter uma vida. Mas tenho muito medo de recaídas”, diz. Atualmente, ele costuma sair três vezes por semana para ir à academia. De vez em quando, vai à banca comprar gibis japoneses. Sua rotina é singela. Mas Carlos Alexandre quer mais. “Não sou feliz. Sinto vergonha de não trabalhar. Também gostaria de ter uma família minha, com mulher e filhos. Mas tenho consciência de que devo dar um passo de cada vez. Talvez, com um pouco de sorte, eu consiga recomeçar. Mesmo estando com 37 anos.”
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Donizeti

EM 02/08/2011 22:49:10
A Ditadura NÃO acabou. Têm muitos policiais nas ruas abusando das pessoas. As corregedorias não funcionam. Como pode um policial julgar o outro? o corporativismo é grande!! Nossos políticos deveriam criar leis para nos proteger das ações dos maus policiais. Muitos ameaçam se forem denunciados.

negrão

EM 31/07/2011 17:22:13
ditadura virou poupança ....sou negro será que posso receber ?????pois meus antepassados foram morto chicoteados tiveram sua cultura de mais de 1000 anos deturpada será que tenho direito a receber algo ,e a situação da áfrica de hoje em dia ????????

raspotin

EM 31/07/2011 17:17:08
o grau de recuperação de um ser humano é individual ,não coloque culpa na ditadura meu amigo e outra ditadura não é poupança vivi na rua e não fui militar e nem participei de nenhum movimento portanto pare de chorar sentir pena de sí mesmo e vá a luta vç é homem !!!!cara !!!

Sandro Paulino

EM 25/12/2010 22:42:39
Acho lamentável ler comentários tão toscos e imbecis como o que eu li aqui, como por exemplo: meu pai trabalhava na ditadura; o Lula e a Dilma são exploradores, pessoas que pensam assim, são passíveis de compaixão, pois são ignorantes, são os famosos analfabetos funcionais. É uma pena

Alexandra

EM 07/04/2010 16:56:22
E se fosse com um filho seu? E tenho dito.


Dermi Azevedo relata momentos de sua vida.

Extraído de: OAB - Rio Grande do Norte  - 13 de Dezembro de 2012

Clico da Verdade: jornalista Dermi Azevedo relata na OAB/RN momentos marcantes de sua vida durante a ditadura militar

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Atravessei a fronteira da Bolívia vestido de padre. Pedi hospedagem a um arcebispo que tinha acabado de celebrar uma missa, ressaltando o amor de Jesus e a misericórdia. Em um primeiro momento, negou-me abrigo, mas depois voltou atrás por minha insistência e me encaminhou para dormir em um lugar com insetos. Vi a diferença entre o falar e o praticar. Outro momento muito difícil foi quando invadiram minha casa e espancaram meu filho, que na época tinha 1 ano e 8 meses, deixando-o com sequelas até hoje, ressaltou o jornalista norte-riograndense Dermi Azevedo no Ciclo da Verdade e Memória, realizado hoje (13) na sede da OAB/RN.
O evento contou com a presença de estudantes, integrantes de movimentos sociais, representantes da Comissão da Verdade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, advogados e presos políticos. Conforme o presidente da Comissão da Verdade e Memória, Djamiro Acipreste, o objetivo é contar a história dos potiguares que enfrentaram inquéritos, processos e abusos durante ditadura militar a fim de produzir relatório e encaminhar para Comissão Nacional. Queremos contar a verdade e mostrar que há condições para os jovens conhecerem a memória verdadeira, disse Djamiro.
Jornalista Dermi Azevedo
Dermi trabalhou, entre outras publicações, nos jornais Diário de Natal, Tribuna do Norte, A Ordem, Salário Mínimo, Visão, Manchete, Fatos & Fotos, VEJA, Isto É (da qual foi correspondente na Itália), Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde e Informations Catholiques Internationales, da França. Como pesquisador, fez especialização em Relações Internacionais, na FESPSP, sobre a política externa do Vaticano, tornando-se, em seguida, Mestre em Ciência Política, na USP, com dissertação sobre a colaboração de agentes religiosos com a repressão de 1964/1985 e Doutor nessa mesma universidade, com uma tese sobre Igreja Católica e Democracia. Dermi foi presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Natal. Presidiu também a COOJORNAT - Cooperativa dos Jornalistas de Natal e foi um dos representantes brasileiros na II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada, pela ONU, em 1993, em Viena, Áustria. Atualmente Dermi reside em Belém, no Estado do Pará.
Autor: Anne Medeiros

sábado, 22 de dezembro de 2012


MEMÓRIAS DA TORTURA

O JORNALISTA DERMI AZEVEDO HOJE CONVIVE COM OS REFLEXOS DO MAL DE PARKINSON, QUE DESCOBRIU EM 2007 - FALA MAIS PAUSADAMENTE E TAMBÉM NÃO ANDA COM A MESMA VELOCIDADE QUE TINHA QUANDO FOI TORTURADO DUAS VEZES EM SÃO PAULO, ENTRE O FINAL DA DÉCADA DE 60 E INÍCIO DE 70.

11:55 15 de Dezembro de 2012
 
Henrique Arruda
DO NOVO JORNAL
Quando olha para trás é até difícil enxergar o ponto de partida de um caminho que ele percorre há mais de 30 anos. As curvas foram muitas, mas nenhuma tão marcante quanto a que começou a atravessar a partir de 1964 com o início da ditadura militar no Brasil.

O jornalista Dermi Azevedo hoje convive com os reflexos do Mal de Parkinson, que descobriu em 2007 - fala mais pausadamente e também não anda com a mesma velocidade que tinha quando foi torturado duas vezes em São Paulo, entre o final da década de 60 e início de 70. Mas nem mesmo os recentes desafios são capazes de calar sua voz ou passar uma borracha na memória.

O desejo de ser jornalista começou quando ainda era um jovem acólito em Currais Novos e o monsenhor Paulo Herôncio de Melo lhe pedia para que, após as missas, Dermi lhe transmitisse os recados ano-tados. “Era eu quem lembrava o monsenhor das obrigações diárias, tudo anotado. A partir disso eu fui pegando gosto pela escrita”, lembra o jornalista, que se diz inspirado pelos colegas que gostam de boas doses de literatura em seus textos.
“Sempre gostei muito de Graciliano Ramos, Rubem Braga, Rachel de Queiroz, Berílo Wanderley, Gabriel Garcia Márquez e todos que vão no campo do ficcionismo”, explica. A TV está ligada em um filme qualquer da Sessão da Tarde enquanto Dermi, repousando no quarto nº 7 do Centro do Trabalhador em Educação, analisa o futuro do jornalismo. Ele acredita que o impresso não vai morrer.

“O hábito de leitura está impregnado há séculos e esse aspecto tátil nunca será superado. Gostamos de ter um objeto nas mãos e não gostamos que tudo já venha mastigado. Quando o audiovisual começou, também se dizia que iria substituir o impresso”, argumenta. Por mais que também esteja “online” e reconheça que a internet traga rapidez, ele condena a falsa impressão de diálogo do meio. “Falta aprofundamento nessa troca que os comentários oferecem. Na minha opinião é um diálogo superficial”, critica.

O garoto natural de Jardim do Seridó, quando chegou à cidade grande, preferiu prestar vestibular para Serviço Social porque o aprofundamento nos direitos humanos era uma meta estipulada desde o início. O ano era 1967. “Entender os direitos e deveres de uma pessoa me iluminou bastante nos trabalhos jornalísticos”, garante.
O curso teve que ser interrompido pouco tempo depois de ter começado. Mas antes de se afastar, Dermi foi eleito o primeiro presidente do Centro Acadêmico Dom Helder Câmara, da Escola de Serviço Social, e iniciou seus trabalhos no movimento estudantil preparando tudo o que fosse necessário para o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, no interior de São Paulo. Foi nesta etapa de sua vida que o jornalista tomou ainda mais consciência de seu papel na luta a favor de uma “sociedade livre, democrática e soberana”.

O congresso da UNE em São Paulo reservaria algu-mas surpresas, sendo a principal delas a sua primeira prisão. Ao chegar a Congonhas, ele e seus companheiros foram levados vendados para o sítio onde iria ser realizado o congresso com mais de 600 estudantes, como ele também conta nas páginas de “Travessias Torturadas”, livro que fez questão de lançar em Natal na última sexta-feira, 14. “O avião não tinha pressurização, então chegamos todos surdos”, recorda, dando um sorriso nostálgico.

A manhã estava fria e chuvosa, pelo que se lembra, quando a Força Pública e os demais órgãos de repressão invadiram o congresso e leva-ram os estudantes em cima de caminhões para o presídio Tiradentes, no centro velho de São Paulo. “Foi bem menos traumática do que minhas outras prisões porque éramos vários, eles nem sabiam direito o que fazer com tantos estudantes. Fiquei em uma cela com 18 colegas, onde só cabiam nove. A gente se revezava para dormir. En-quanto um grupo deitava, o outro ficava em pé”, conta.

Em 69 ele retorna à Natal, mas para a sua segurança decide se exilar no Chile, onde existia um governo socialista. E assim ele cruzou a fronteira clandestinamente disfarçado de monge. A permanência no estrangeiro durou até 1971, quando Dermi não aguentou mais ficar distante de sua realidade política e voltou ao Brasil.

Como não queria abandonar o ofício de jornalista profissional, mesmo tendo que medir bem todas as palavras que fosse usar, Dermi começou a trabalhar nas redações do “Última Hora”, dirigido por Samuel Weiner, mas ao longo da carreira acumulou no currículo também a passagem pelas redações do Estadão, Folha de São Paulo e Jornal da Tarde.

Sobre os tempos que passou nas redações potiguares, lembra que sua geração de jornalistas era ativa, que fundou, por exemplo, a Cooperativa dos Jornalistas de Natal, para diminuir as “brigas” entre os homens da notícia e os diagramadores.

“Não era diferente do jornalismo que se faz hoje, mas o espírito investigativo era maior. Dava-se mais valor à reportagem”, compara. “A minha geração é a mesma desses antigões que hoje em dia estão aí na imprensa potiguar. Falo de Vicente Serejo, Albimar Furtado, Jomar Morais, Cassiano Arruda Câmara e tantos outros”, completa.

Por aqui passou pela Tribuna do Norte e pelo Diário de Natal. Das matérias que fez, lembra muito de duas. “Uma sobre a utilização de laparoscopia para a esterilização de mulheres pobres e outra que, na verdade, foi uma série sobre a mineração no RN, mostrando como o subsolo era explorado retirando tungstênio para a indústria armamentista e como essas empresas pagavam pessimamente os funcionários”, recorda.
DITADURAS SÃO IGUAIS
Quatorze de janeiro de 1974. Era fim de tarde e ele ainda estava na redação da Folha de S. Paulo quando foi preso e levado ao DEOPS. “Foram duas prisões neste ano e entre elas eu estava lendo Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos e isso me marcou muito porque achei muito chocante comparar o que ele viveu no Estado Novo com o que eu estava vivendo anos depois. Ou seja, toda ditadura é igual”, afirma.
Pressionado para con-fessar sua suposta filiação ao PC do B, Dermi foi colocado no Pau de Arara, levou choque nos órgãos genitais, tapas nos ouvidos (o que eles chamavam de telefone) e o que mais lhe impressionava durante toda a situação era como ele poderia ser tratado como um bandido. “É uma sensação muito estranha ser preso. Eu ouvia nas conversas eles falando ‘O elemento já está preso’ e me perguntava como eu poderia ser um elemento, como poderia ser inimigo. Inimigo de quem?”, lembra.

Na segunda vez que lhe prenderam, ainda em 74, o motivo foi um álbum que ele montou para sua esposa contendo diversas fotos de família e de ícones da época. “Tinha muita gente e eles me interrogaram sobre cada personagem do álbum, desde Che Guevara até Fidel Castro. Nunca mais eu vi o álbum depois disso, ou ele sumiu, ou está escondido em algum lugar com alguém”, conta.

Além de receber a dor da tortura, Dermi carrega até hoje a dor maior de saber que sua família também foi torturada, já que a ditadura também pegou sua esposa e seu filho de apenas 1 ano e oito meses na época. “Minha esposa sofreu praticamente os mesmos traumas que eu; e meu filho eles jogaram no chão. Até hoje ele carrega no rosto as sequelas do espancamento”, diz.

“O senhor aceitaria passar por tudo isso novamente hoje em dia?”, questiona o repórter após uma pequena pausa na conversa. “Passaria pelas mesmas situações para garantir uma vida mais digna para todos porque isso nunca me silenciou e nunca deixei me silenciar. Pretendo até o final da minha vida não ficar calado diante uma situação de injustiça”, responde.
UMA VIDA DE NOTÍCIA
Se pudesse noticiar al-guma coisa que ele não teve a oportunidade, Dermi escolhe dois fatos “Pode inventar tam-bém alguma coisa que não aconteceu, né?”, pergunta. “Pode”, aceita o repórter. Para começar, ele diz que gostaria de ter noticiado a permanência do Papa João Paulo I no pontífice, porque, segundo Dermi, João Paulo I estava prestes a fazer revoluções profundas no catolicismo.

“Como, por exemplo, aceitar a ordenação de mulheres, acabar com o celibato, e há quem diga ainda que ele iria redimir Martinho Lutero. Gostaria de ter noticiado que ele permaneceu e promoveu essas mudanças, mas infelizmente morreu antes ou, como dizem também, foi vítima de um complô dentro do próprio Vaticano”, defende.
A segunda notícia que gostaria de dar é o fim da impunidade para pessoas desaparecidas na época da ditadura. “Gostaria que todos esses arquivos fossem abertos”, diz o jornalista acreditando também que os casos não ficarão para sempre sem uma solução. Para isso, a Comissão Nacional da Verdade, empossada pela presidente Dilma em maio deste ano, será essencial.

Hoje Dermi Azevedo é aposentado por ter adquirido mal de Parkinson e também por ser anistiado político, mas mesmo assim não pretende se afastar do jornalismo. Agora se dedica aos livros que pretende escrever até o final da carreira. O primeiro foi lançado na última sexta-feira, 14 em Natal. “Travessias Torturadas” conta detalhes do que sofreu com a ditadura militar.

Os próximos provavel-mente serão “Direitos Humanos: Teoria e Prática” e uma compilação, ainda sem nome, de suas melhores matérias publicadas ao longo da carreira. “Difícil é saber o que botar né? Mas já estou organizando”, garante. Sobre o livro lançado em Natal, Dermi garante que não sofreu ao relembrar de toda a história, só teve dificuldade mesmo para saber até que ponto contar.