segunda-feira, 10 de março de 2014

Eduardo Coutinho em Dois Atos e um P.S.


Crônica de Marcius Cortez

       Ato I -  Conheci Eduardo Coutinho numa festa junina no bairro de Casa Forte em Recife no ano de 1962. Ele desembarcara na cidade dias depois de João Pedro Teixeira, fundador e organizador da Liga Camponesa de Sapé, ter sido assassinado a tiros de fuzil disparados por dois soldados da Polícia Militar e mais um civil a mando do fazendeiro Agnaldo Veloso Borges.  Com isso, a própria realidade passou a fornecer assunto para o documentário “Cabra Marcado para Morrer”. Coutinho se ocupou em registrar as reivindicações da população de Sapé, que se mobilizara exigindo justiça, mais de cinco mil trabalhadores rurais nas ruas da pequena cidade, distante 55 quilômetros de João Pessoa, Paraíba. Agnaldo, suplente de Deputado Estadual, renunciou ao mandato para se aproveitar do mal fadado foro privilegiado. Numa palavra, o latifundiário branco e poderoso não passou nenhum dia preso. No caso dos soldados, armou-se um júri com cartas marcadas: os acusados foram absolvidos por falta de provas. Já o civil, esse tomou doril e nunca mais ninguém viu. Paralelo a isso, o diretor seguia filmando a vida da viúva Elizabeth Teixeira e dos 11 filhos órfãos de pai. Foi quando eclodiu o Golpe de 64, a mudança social tão necessária ao país fora amarrada e amordaçada num poste. Paraíba e Pernambuco sofreram dura repressão nas primeiras semanas da “Gloriosa Revolução”. O incidente, registrado pela televisão francesa, do líder comunista Gregório Bezerra sendo arrastado pelas ruas do Recife é apenas um indicativo da barbárie que ensanguentou aquela época. Óbvio que a  cabeça do cineasta metido com as Ligas Camponesas fora posta a prêmio. Os usineiros queriam comer o fígado daquele comunista filho de uma égua. É aí onde entro eu. No dia 2 de abril de 1964 sentindo-me golpeado na alma, estou a perambular pelo centro da cidade quando na Praça Joaquim Nabuco, pertinho do famoso restaurante “Leite”, vejo entre os mendigos que se abrigam ali, um rosto familiar. Chego perto dele e pergunto “você não é o Eduardo Coutinho?” Arregalando os vinte olhos da cara, o falso mendigo confirmou, “sou eu mesmo”. Então Eduardo me conta que já havia sido preso, mas conseguira fugir e que só lhe restava fazer aquele teatro porque estava sendo caçado. "Olhe tá aqui meu endereço e a chave lá de casa". Rapidinho, o nosso amigo sumiu daquele lugar, não é preciso dizer que o homem estava desesperado. Escondi-o por três dias. Certa manhã, ele me comunicou que ia embora. Depois fiquei sabendo que arrumara um esquema que contava com a proteção de Ademar de Barros, o governador golpista de São Paulo, amigo de um familiar do diretor paulistano de nascimento.  
       Ato II - No segundo semestre do ano passado, encontro Eduardo na Cinemateca de São Paulo. Ele ia apresentar seu último filme para o auditório lotado. (É aquele que contem uma visão da televisão e da sociedade brasileira atual, trágico e engraçadíssimo, bem ao estilo do cineasta brasileiro, recentemente homenageado durante a cerimônia da entrega do Oscar). Após os debates, fui procurá-lo. No meio da conversa, um amigo dele me pergunta quem eu era. O criador de “Santo Forte” falou para eu contar aquela história do Recife. Foi o que bastou. Logo, logo estávamos a discutir se os usineiros preferiam Eduardo cozido no vapor, assado na brasa ou grelhado no espeto. Mal podia imaginar que aquela jocosa tarde era uma despedida. No dia 2 de fevereiro, tomo conhecimento de sua morte pelas redes sociais. Passo por alguns blogs que noticiam a tragédia. Sou atingido pelo teor dos comentários dos internautas. Claro aquilo não formava a maioria, porém o nível da truculência de certos comentários era revoltante. Um deles parabenizava o filho por ter matado aquele pai. Fecho correndo o computador. Nem sei o que dizer. A verdade é que tem gente que está no mundo para quebrar as nossas mãos. Nem sei se é consolo, mas me protejo pensando no escritor, jornalista e compositor Antônio Maria. Maria dizia que era pra gente nem dar bolas. Eles são uns idiotas, eles pensam que a gente escreve com a mão.
P.S. – Imagina quebrar as mãos de Eduardo Coutinho, um homem digno de todo o nosso afeto.