O
Brasil de Pinochet
Fonte: Estadão.
SANTIAGO - O
expediente no Itamaraty já havia terminado quando, às 20h30 de 13 de setembro
de 1973, diplomatas chilenos foram recebidos na chancelaria esvaziada, em
Brasília. O presidente Emílio Garrastazu Médici estava em São Paulo, de onde
telefonara dando ordens expressas para que o Brasil se tornasse o primeiro país
a reconhecer a junta militar que derrubara o governo de Salvador Allende. Um
avião com "20 toneladas de medicamentos" estava a caminho de
Santiago.
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Pinochet e tropas militares no
palácio presidencial
"É certo
dizer que o novo governo do Chile encontrará no Brasil um poderoso
aliado", escreveu, emocionado, no primeiro telegrama à junta militar, o
encarregado de negócios chileno em Brasília, Rolando Stein - o embaixador de Allende
no País, o jurista Raúl Rettig, que décadas depois chefiaria a comissão da
verdade chilena, havia renunciado naquela manhã. Stein acertou na mosca.
Com base em
arquivos brasileiros, já se sabia que o governo Médici deu amplo apoio aos
conspiradores chilenos antes, durante e depois do golpe que este mês completa
40 anos. Empresários brasileiros enviaram dinheiro a grupos de direita no
Chile, o embaixador em Santiago, Antonio Cândido da Camara Canto, atuou como
pôde para minar o governo Allende (mais informações nesta página) e, dias após
a queda dos socialistas, agentes brasileiros foram enviados ao Estádio Nacional
e a outros centros de repressão para prestar "consultoria" a colegas
chilenos.
O Estado, porém, teve
acesso a centenas de telegramas diplomáticos secretos do Chile recentemente
liberados - e inéditos no Brasil - que revelam novas informações sobre o grau e
as formas de participação do governo Médici na derrubada do governo da
Unidade Popular (UP). Ao longo desta semana, o jornal publicará reportagens
exclusivas sobre como o Brasil ajudou a empurrar o Chile para o período mais
sombrio de sua história.
Uma das
revelações mais impressionantes dos documentos chilenos é que, logo após chegar
ao poder, o governo Allende recebeu informações precisas sobre as atividades da
ditadura brasileira contra o Chile - incluindo planos para derrubar à força a
UP. Segundo um telegrama "estritamente confidencial", um jornalista
chileno vinculado ao ex-presidente Jorge Alessandri, de direita, alertou o
embaixador de Allende em Brasília que havia sido procurado "por um general
brasileiro amigo". O militar lhe propôs ajuda para "organizar no
Chile um movimento de resistência armada (...), estruturado em forma de
guerrilha, (...) contra o ‘perigo vermelho’."
No mês seguinte,
a embaixada recebeu novas e mais detalhadas informações sobre o plano de
insurgência no Chile. Desta vez, porém, o alerta partiu de um informante
altamente improvável: um oficial brasileiro, "com ideias políticas de
esquerda", vinculado ao serviço de inteligência do Exército.
Por meio de um
intermediário, o militar fez chegar a um secretário da embaixada chilena a
informação de que, dentro do Ministério do Exército, no Rio de Janeiro,
funcionava uma sala de operações, com maquetes da Cordilheira dos Andes e
mapas, para estudar e planejar uma guerrilha anticomunista no Chile.
Brasileiros participariam apenas como instrutores e os combates seriam travados
por civis chilenos. Mais: como parte dos preparativos, o Exército do Brasil
teria enviado "diversos agentes secretos, que entraram no Chile como
turistas".
Um cidadão
chileno que viva em São Paulo "e merece toda confiança" também
afirmou à missão diplomática que um "corpo do Exército nessa cidade
estaria procurando voluntários chilenos para empreender uma aventura
bélica" no Chile. A articulação estaria sendo feita com ajuda de
integrantes da Fiducia - equivalente chilena à Tradição Família e Propriedade
(TFP) - que haviam se mudado para São Paulo.
Embaixador
suíço.
O militar brasileiro, cuja identidade não é revelada nos documentos, passou
outro recado importante ao governo Allende. Entre os 70 "subversivos"
brasileiros que foram ao Chile no ano anterior, trocados pelo embaixador suíço,
Giovanni Bucher, havia dois espiões do Exército brasileiro. A governo Médici
havia deliberadamente atrasado a negociação para libertar os presos políticos
com o objetivo de colocar os infiltrados em território chileno. Lá, eles
deveriam coletar informações e se comportar como "agentes
provocadores".
À época, cerca
de 5 mil exilados brasileiros viviam no Chile, onde conduziam intensas
atividades de denúncia à ditadura. Os documentos chilenos mostram que o
embaixador do Brasil em Santiago, Antônio Cândido da Câmara Canto, várias vezes
apresentou protestos formais ao governo em razão de artigos e declarações de
opositores brasileiros à imprensa local. Vários brasileiros que estiveram no
Chile, consultados pelo Estado, disseram que muito provavelmente eles eram
monitorados por meio de espiões.
O embaixador de
Allende no Brasil chama atenção para o caso de duas senhoras brasileiras,
parentes de exilados, que foram presas pela Aeronáutica no Aeroporto do Galeão,
no Rio, ao desembarcarem do Chile, no dia 19 de janeiro daquele ano. Elas
traziam cartas de brasileiros exilados, incluindo uma mensagem de Almino
Afonso, ex-ministro do governo João Goulart, ao deputado Rubens Paiva. O
embaixador chileno em Brasília acreditava que elas haviam sido delatas por
informantes da ditadura entre os brasileiros em Santiago. No dia seguinte ao caso
no Galeão, Rubens Paiva foi preso em sua casa por agentes que se diziam da
Aeronáutica.