quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Anos de chumbo

"Nostalgia da Luz" mistura história e astronomia para falar sobre os desaparecidos políticos no Chile

Filme em cartaz na Capital a partir desta quinta é dirigido por Patricio Guzmán, documentarista autor de obras referenciais sobre a ditadura militar de Augusto Pinochet

zerohora.com.br
26/02/2015 | 06h31
"Nostalgia da Luz" mistura história e astronomia para falar sobre os desaparecidos políticos no Chile IMS/Divulgação
Foto: IMS / Divulgação
Definições estritas não dão conta de Nostalgia da Luz (2010): o filme que entra em cartaz nesta quinta-feira hoje no Espaço Itaú 3 convida o espectador a flanar de um tema a outro, surpreendendo ao propor analogias que acabam conduzindo a narrativa rumo a territórios inauditos. Longe de causar desconforto, porém, essa derivação é justamente o maior atrativo do longa dirigido por Patricio Guzmán — um dos mais importantes documentaristas em atividade no mundo, realizador do monumental A Batalha do Chile.
Chileno radicado na França, o cineasta ganhou no recente Festival de Berlim o troféu de melhor roteiro e o Prêmio do Júri Ecumênico com o documentário El Botón de Nácar. (A boa fase do cinema chileno, aliás, também foi premiada na Berlinale com o Grande Prêmio do Júri, o segundo em importância do festival, para El Club, de Pablo Larraín.)
Melhor documentário do European Film Awards de 2010, Nostalgia da Luzcomeça como se fosse um documentário científico de canal de TV a cabo, mostrando telescópios, observatórios astronômicos e estrelas. Já de partida, no entanto, a narração de Guzmán propõe caminhos paralelos ao acrescentar lembranças pessoais e comentários sobre o golpe que mergulhou o Chile nas trevas a partir de 1973.
Aos poucos, as conexões vão se esclarecendo: graças a características como a baixíssima umidade do ar, o deserto do Atacama é um dos melhores lugares do planeta para o acompanhamento dos astros no céu; o isolamento da região também serviu para os militares criarem um campo de prisioneiros durante a ditadura, aproveitando as instalações de uma mina de salitre abandonada.
O filme mostra que, ao lado de sofisticadas instalações que perscrutam galáxias em busca dos mistérios sobre a origem do universo, mulheres esquadrinham pacientemente a imensidão desértica atrás de pistas e fragmentos de ossos que possam indicar o paradeiro de maridos e parentes desaparecidos políticos, que podem estar enterrados em valas comuns.
Costurando depoimentos de astrônomos, arqueólogos e ex-prisioneiros do regime militar, Nostalgia da Luz liga os pontos: tanto o estudo dos corpos celestes quanto a busca pelos corpos dos entes queridos são maneiras de interrogar a memória e o passado — um anátema para muitos chilenos, que preferem deixar a história recente do país enterrada.
Com rara sensibilidade poética, Guzmán transcende o mero panfleto e adensa sua obra com questionamentos existenciais e metafísicos, sem nunca esquecer o contexto político-social.
Como os mais recentes documentários da cineasta belga Agnès Varda, Nostalgia da Luz é um filme-ensaio — um tipo híbrido de cinema que mistura investigação, autobiografia, poesia, documentário, divagação e até drama.
Falando à imprensa chilena sobre El Botón de Nácar, em que entrelaça o extermínio de indígenas no sul, os desaparecimentos políticos e a enorme extensão costeira de seu país, Guzmán forneceu uma chave de leitura também para Nostalgia da Luz: "Me interessa muito a geografia chilena e creio que se podem fazer metáforas por meio desses elementos. O que mais me interessa é a memória. Me interessa lutar contra a amnésia do Chile, o desejo de aparentar ser um grande país, o que também é, mas onde as diferenças sociais são enormes". 
Cinco filmes sobre a ditadura militar no Chile
No (2012)O diretor Pablo Larraín, encena o início do fim da ditadura de Augusto Pinochet, quando foi realizado um plebiscito para decidir pela continuidade ou não do regime militar
Rua Santa Fé (2007)
Carmen Castillo conta a história de seu marido, um líder sindical assassinado pelos militares, e destaca episódios da resistência popular sufocados pela repressão
Machuca (2004)
Andrés Wood destaca um menino pobre que vai estudar em escola de elite durante o governo Allende e testemunha as mudanças decorrentes do golpe que levou Pinochet ao poder
Desaparecido: Um Grande Mistério (1982)Mestre do cinema político, Costa-Gavras mostra a saga de um pai americano (Jack Lemmon) que busca pelo filho desaparecido  no 11 de Setembro chileno e descobre a participação da CIA no golpe
A Batalha do Chile (1975 – 1979)Aclamado projeto em três partes no qual Patricio Guzmán passa em revista o processo político e social que o Chile viveu nos momentos anteriores e posteriores ao golpe de 1973

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Está só no começo: vai piorar

“Povo é a dimensão humana do Estado, o conjunto dos cidadãos de uma Nação”. (Hans Kelsen, jurista e filósofo austríaco
(*) Rinaldo Barros
Entre 1930 e 1945, o Brasil enfrentou movimentos, como a Revolução Constitucionalista, em 1932; a Intentona Comunista, em 1935; a Intentona Integralista, em 1938; que levaram grande número de pessoas às ruas. Mas protestos ou tentativas de levantes não aconteceram apenas durante o governo de Vargas. Antes de seu primeiro mandato, homens pegaram em armas em São Paulo tentando derrubar as oligarquias que há anos vinham governando o país.
Mais tarde, nos anos 1960, com a recessão econômica, inflação, desemprego e o arrocho salarial, o povo manifestou seu descontentamento por meio de greves e passeatas; culminando com o movimento militar de 1964, regime autoritário que perdurou até 1985.
Atualmente, é impossível ignorar a dimensão social e política que os desmandos do PT governo e o descontrole da economia têm adquirido em todo o país. A indignação coletiva com a precariedade do transporte público remete à Revolta do Vintém de 1879, quando manifestantes no Rio de Janeiro desafiaram a monarquia do Brasil por causa das tarifas dos bondes.
O fato é que, de um modo geral, o transporte público no Brasil é caro, inseguro e mal gerido, afetando especialmente passageiros pobres que não têm escolha a não ser contar com esse sistema.
Há uma espécie de ira popular difusa represada que pode explodir por qualquer motivo, até mesmo num simples jogo de futebol. São milhões de pessoas sofridas e estressadas, no limite de sua capacidade, prontas para explodir em violência inconsequente.
Em plena vivência da normalidade democrática, a insatisfação popular alimentada pela perda da segurança, em diversas áreas urbanas, chegou a tal ponto que os manifestantes protestam contra aumento nas passagens ou por qualquer acidente ou atraso; e depredam ônibus, trens, lojas, bancos e logradouros públicos; em confronto com forças policiais, atirando bombas de efeito moral e balas de borracha.
Aliás, tropas cada vez menos preparadas para conviver com os movimentos sociais em luta; porquanto são treinadas fundamentalmente para combater a criminalidade. Os especialistas na questão afirmam que, nas periferias das cidades, onde a presença do Poder Público é fraca, o crime consegue instalar-se mais facilmente.
São os chamados espaços segregados, áreas urbanas em que a infraestrutura urbana de equipamentos e serviços (não existe saneamento básico, saúde, sistema viário, iluminação pública, transporte, lazer, educação, segurança pública, nem acesso à justiça) é precária ou insuficiente.
Por sua vez, a Segurança deve ser (mas ainda não é) considerada um direito de cidadania, fundamental para o desenvolvimento econômico e social. Nem o Estado nem o cidadão possui essa consciência.
Todavia, e para piorar o cenário atual do patropi, a situação é - perigosamente - ainda mais grave: a insatisfação não se restringe às áreas urbanas, pois também há conflitos no campo e nas áreas indígenas.
Os brasileiros vivemos a ressaca de uma eleição vencida à base de muita mentira, promessas frustradas e uma prática de governo diametralmente oposta à discurseira da campanha eleitoral. O corte de benefícios sociais, o aumento de impostos e das tarifas de água e luz, o racionamento, os apagões, a alta dos juros e da inflação, e a elevação do desemprego apenas começaram.
Diante da avalanche de corrupção, cresce a sensação mista de desalento, vergonha e revolta.
O caro leitor há de convir que a combinação desses movimentos de insatisfação popular - nas cidades e no campo - com a tendência atual da economia brasileira (eivada de incertezas), aponta para um aumento das tensões, com resultado imprevisível. Recomendo “encostar o ouvido no chão, para sentir o porvir”.
É preciso atentar para o seguinte: o controle de multidões ainda não faz parte do currículo das nossas Academias de Polícia. Tal como ocorre atualmente, a Polícia, o Estado, tende a enxergar os manifestantes insatisfeitos (o povo) como se fossem inimigos. Pode acontecer tudo, inclusive nada.
Registre-se que dezenas de manifestações - tendo como tema o “impeachment” da presidente (que não controla sua “base aliada” nem seus 39 ministros, até porque não tem programa de governo) - estão sendo organizadas em diversas cidades brasileiras para o dia 15 de março, via redes sociais.
Resumo: há mais coisas no ar além dos aviões de carreira, e urge capacitar e aparelhar melhor o Estado brasileiro para conviver com o Regime Democrático de Direito; pois a insatisfação popular é crescente, e está só no começo: vai piorar.

(*) Rinaldo Barros é professor – rb@opiniaopolitica.com