sábado, 20 de dezembro de 2014

Tortura
 (*) Rinaldo Barros
O encerramento do trabalho da Comissão Nacional da Verdade repõe em debate a questão da tortura contra presos políticos. Ao receber o Relatório da CNV, disse a presidente: "Hoje o Brasil inteiro se encontra, enfim, consigo mesmo, sem revanchismo, mas sem a cumplicidade do silêncio".
Pretendo contribuir para uma discussão ética, que não se prende no tempo, não se localiza no calendário, porque é perene. O Supremo, por maioria, em decisão proferida em 29 de abril de 2010, entendeu terem sido abrigadas pela Lei de Anistia todas as pessoas que, durante o regime de exceção instaurado em 1964, torturaram e/ou assassinaram opositores do regime; bem como, todos os militantes opositores, inclusive os que, por decisão política, cometeram atos de violência armada.
O Supremo fundamentou seu entendimento no princípio da Segurança Jurídica, o qual estaria ameaçado se, por via da interpretação judicial, fosse dada dimensão restrita ao leque dos anistiados, deixando ao desamparo da Anistia os torturadores. Sem Segurança Jurídica não há Democracia.
Neste caso, a razão esteve com a maioria do pleno do STF, sendo voto vencido apenas os dois ministros derrotados no seu entendimento: Ayres Britto e Ricardo Lewandovski. Entenderam esses últimos que a tortura é crime comum, não é crime político, daí que não foi abrangido pela Anistia.
A decisão do Supremo que tivesse posto a tortura fora da Anistia não levaria os torturadores do antigo regime, de imediato, para a prisão. Eles estariam ao desabrigo da Anistia, mas teriam de ser submetidos a investigação e processo, com amplo direito de defesa. A efetiva participação nos atos de tortura, relativamente a cada um dos acusados, teria de ficar configurada caso a caso. 
O que fica dessa decisão do mais alto tribunal do país, é a afirmação de que a tortura, praticada - sem controle - numa fase difícil de nossa História contemporânea, teve a ressalva de crime político, razão pela qual os praticantes da tortura também foram anistiados.
Relembre-se que, em 1979, o governo militar queria Anistia apenas para os agentes públicos. As esquerdas é que mobilizaram o povo e, nas ruas, lutaram pela “Anistia ampla, geral e irrestrita”.
Foi uma conquista do povo brasileiro. Não cabe o revanchismo.
Fugindo desse caso específico de nossa história recente, registre-se que, no presente, em nossa convivência cotidiana com a violência urbana, a tortura (física ou psicológica) continua sendo uma prática corriqueira em diversos órgãos responsáveis pela averiguação, investigação e repressão à criminalidade. Sem falar das condições medievais dos mais de 500 mil presos nas masmorras do sistema penitenciário. Cada vez mais presos, cada vez mais drogas, expondo a impotência do Estado.
A Justiça ainda é inacessível para a maioria, e as prisões permanecem subumanas.
Deixemos de hipocrisia. Continua existindo tortura no Brasil real, e no mundo. Todos os dias.
Trata-se de violência do Estado contra a sociedade civil; praticada de forma continuada e incentivada pela concepção ultrapassada sobre Segurança, pela falta de capacitação, falta de informação qualificada, ausência de integração entre as polícias e infraestrutura técnica precária. Essa constatação nos leva a deduzir que a violência, no patropi, tem caráter endêmico, está enraizada em nossa cultura, à margem e ao arrepio da Lei.
Na verdade, em homenagem ao Brasil de amanhã, registre-se que a tortura não é crime político. Nenhuma razão política, nenhum credo, nenhum motivo que se alegue, nenhuma causa de qualquer natureza, nenhuma excludente, nada, absolutamente nada, justificou, no passado, ou autorizará, no futuro, a prática da tortura.  A tortura é um crime contra a humanidade, é sempre um escárnio à dignidade humana. Fere o torturado e degrada o torturador.
Diz o Artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Ninguém será submetido a tortura nem a punição ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes”.
Observe-se o uso do pronome “ninguém” no texto. O mesmo pronome foi utilizado nas diversas línguas em que a Declaração Universal foi proclamada, em dezembro de 1948. 
Faz a diferença, é a escolha entre o caminho da civilização ou da barbárie.

(*) Rinaldo Barros é professor – rb@opiniaopolitica.com