90
anos depois: Lênin e a herança da luta revolucionária
Ricardo Costa, membro do Comitê Central do PCB
Neste 21 de janeiro de
2014, completam-se 90 anos da morte de Vladimir Ilyitch Ulianov, codinome Lênin,
sem dúvida a maior figura histórica do século XX, por ter sido a principal
liderança da Revolução Socialista de 1917 na Rússia, o acontecimento histórico
de maior importância do século passado. A Revolução Bolchevique abalou as
estruturas da sociedade capitalista, ao inaugurar a primeira grande experiência
socialista da história e passar a assombrar as mentes burguesas como um
fantasma, lembrando sempre que a vitória dos trabalhadores contra o Estado
capitalista havia se transformado numa realidade num país e numa possibilidade
ameaçadora no resto do mundo. Era o exemplo que faltava aos trabalhadores de
todos os países, para animar as lutas contra a exploração capitalista e em
favor da alternativa socialista. Se, no processo de construção do Estado
soviético, foram vivenciadas inúmeras dificuldades, muitos erros foram
cometidos e, devido à conjunção de variados fatores, esta experiência acabou
derrotada ao final do século XX, fica para a História a herança dos muitos
acertos na tentativa de edificação de um poder genuinamente operário e, acima
de tudo, fica a herança do pensamento e das ações de Lênin, cuja obra teórica e
política tem muito a nos dizer nos dias atuais.
Um dos grandes legados de
Lênin foi sua férrea batalha contra o reformismo, o economicismo e o oportunismo
de direita e de esquerda no movimento operário. Resgatou o pensamento
revolucionário de Marx e Engels, numa época em que predominava, no interior do
movimento socialista internacional, a perspectiva reformista de Bernstein e
outros revisionistas do marxismo, que criticavam a característica “partidária e
tendenciosa” dos fundadores do materialismo histórico e buscavam transformar o
socialismo científico numa ciência imparcial e neutra, a querer comprovar que a
evolução humana, submetida a “leis estabelecidas
e confirmadas pela ciência social positiva”, levaria invariavelmente ao
socialismo, fase “natural e espontânea, portanto inevitável e irrevogável” do
desenvolvimento social[1].
Na II Internacional,
fazia-se uma leitura positivista de Marx e Engels, na verdade uma domesticação
política de suas ideias, pois toda a teoria da luta de classes e da necessidade
da revolução para ultrapassar o capitalismo fora esquecida. As teses de
Bernstein contaminavam os círculos socialistas com a análise de que o avanço do
capitalismo, na virada do século XIX para o século XX, trazia como
características a capacidade do sistema de resistir às crises periódicas, o
crescimento das camadas médias (na contraposição à tendência de pauperização da
sociedade, apontada por Marx) e as transformações políticas no sentido da
democratização, com a conquista do sufrágio universal. Tais mudanças
desmentiriam as teses clássicas de luta pelo poder centradas na insurreição e
na revolução violenta. A transição para o socialismo viria do próprio
desenvolvimento econômico e social capitalista, com seus reflexos na ampliação
dos espaços políticos (eleições e parlamento), desde que os socialistas
soubessem utilizar de forma inteligente estes espaços.
A trajetória política de
Lênin é a de uma precoce identificação com a visão revolucionária de mundo,
impulsionada pelas violentas contradições da sociedade russa de seu tempo de
juventude. Logo cedo (aos 17 anos, em 1887), entrou em contato com as obras de
Marx e Engels. Antes disso, já participava das lutas contra a autocracia
czarista na Rússia, desde o enforcamento de seu irmão mais velho, Alexandre
Ulianov, por conspiração em um atentado terrorista contra o Czar, mesmo período
em que tomou conhecimento das obras do marxista russo Plekhanov. Em 1892,
traduziu o Manifesto do Partido Comunista para o russo. Três anos depois, em
São Petersburgo, ajudava a criar a Liga da Luta pela Emancipação da Classe
Operária e, depois, foi preso e exilado na Sibéria.
Ao final do exílio, foi viver
em Munique (1900-1902), onde, ao lado de Martov, fundou o jornal Iskra, publicação do Partido Operário
Social Democrata Russo (POSDR), na qual passou a usar o pseudônimo de Lênin
para assinar seus artigos. Morando em Londres (1902-1903), participou do 2º
Congresso do POSDR, no qual liderou a ala bolchevique ("maioria" em
russo) contra os mencheviques ("minoria"), antecipando a ruptura entre
revolucionários e reformistas que ocorreria nos partidos socialdemocratas no
momento de eclosão da Grande Guerra de 1914. Neste período produziu o livro Que
Fazer? A organização como sujeito político, texto publicado
inicialmente no Iskra para o combate
militante às posições reformistas e revisionistas dominantes na II
Internacional, debate este que mobilizou outros revolucionários na época, como
Rosa Luxemburgo, autora do célebre Reforma
ou Revolução? O livro de Lênin também cumpriu o objetivo de responder ao
desafio colocado aos comunistas russos de como construir o instrumento político
(o partido) necessário para realizar o projeto revolucionário no país dos
czares.
Nesta obra, Lênin atacou
o culto às ações espontâneas, asseverando que “a consciência socialista não
brota espontaneamente das lutas do proletariado”. Somente uma organização
revolucionária, formada por militantes profissionais e quadros de vanguarda
forjados nas lutas operárias, poderia promover a ação consequente contra o
regime do Czar e a ordem capitalista. O partido revolucionário devia assumir o
papel de propagandista, agitador e organizador da luta proletária, assim como
de educador, expondo a todos os trabalhadores e demais camadas populares os
objetivos gerais do programa socialista. Criticou os métodos artesanais, a
improvisação e a desorganização que grassavam entre os oposicionistas russos e,
partindo do pressuposto segundo o qual a luta política, pelo seu grau de
amplitude e complexidade, requer um trabalho diferenciado da luta sindical e
das batalhas voltadas às reivindicações econômicas, defendeu uma organização formada
por “homens cuja profissão é a ação revolucionária”. Em função das condições extremamente
adversas para a luta política na Rússia daqueles anos, que impunha aos
revolucionários a clandestinidade, era necessário um alto grau de centralização
organizativa, com o cuidado de que os militantes não se afastassem das massas,
nem que se abandonassem os princípios democráticos na condução dos debates
internos. Por fim, Lênin postulava que, no Partido revolucionário, deveria
desaparecer por completo toda distinção entre operários e intelectuais.
Após estadia em Genebra
(1903-1905), Lênin retornou à Rússia para participar da Revolução de 1905. Foi
um ano fértil na produção de textos que aprofundavam a vertente revolucionária
e o combate ao reformismo, como Duas Táticas da Socialdemocracia na
Revolução Democrática. No prólogo deste documento, Lênin apontava para
a necessidade de fazer com que o “trabalho habitual, regular, corrente de todas
as organizações e grupos do nosso partido, o trabalho de propaganda, agitação e
organização” estivesse orientado no sentido de “fortalecer e ampliar a ligação
com as massas”. O sucesso da revolução dependia, para além da correta avaliação
do momento político e da correlação de forças no país, que fossem “justas as
palavras de ordem táticas” – a fim de que se apoiassem na força real das massas
– e que se desenvolvesse todo um esforço para “educar e organizar a classe
operária”. Neste livro, Lênin travou intenso debate político com os
mencheviques, para quem a hegemonia do processo deveria ficar com a burguesia
liberal e não com a vanguarda proletária, pois a “direção e a participação
hegemônica do proletariado” afastariam os representantes burgueses da luta
contra o Czar, diminuindo a “amplitude da revolução”.
Contrapondo-se a esta
visão reformista, Lênin afirmava que somente o proletariado tinha condições de
atrair o apoio da massa camponesa e, assim, esmagar pela força a resistência da
autocracia, ao mesmo tempo em que paralisaria a instabilidade da burguesia,
marcada pela postura inconsequente no combate ao regime czarista. O ataque
frontal à autocracia russa somente seria vitorioso, portanto, caso o
proletariado assumisse o papel de dirigente da revolução popular e não de força
auxiliar da burguesia no interior da revolução democrática. Mesmo reconhecendo
que a derrubada do poder autocrático representaria, em última instância, o
fortalecimento da dominação burguesa, Lênin entendia a importância da conquista
da república democrática para que o proletariado e as organizações de vanguarda
pudessem agir com um mínimo de liberdade e, com isso, iniciar a luta pela
transição socialista. O movimento seguinte seria “levar a cabo a revolução
socialista, atraindo a si a massa dos elementos semiproletários da população, a
fim de quebrar pela força a resistência da burguesia e paralisar a
instabilidade do campesinato e da pequena burguesia”[2].
Mas a classe operária não
conquistou a hegemonia do processo de lutas e a correlação de forças em 1905
ainda era extremamente desfavorável às massas populares, apesar de ter
representado uma rica experiência de lutas e das quais o maior saldo, para a
organização dos trabalhadores, foi a criação dos Sovietes, os quais
desempenhariam papel preponderante na Revolução de 1917. Após a derrota da
revolução democrática, Lênin foi eleito presidente do POSDR, em 1906, mas foi
novamente obrigado a se exilar por conta do massacre e da perseguição
desenfreada aos militantes e organizações que se opunham ao governo do Czar. Somente
em 1917 Lênin voltaria à Rússia.
Durante esse longo exílio,
fez o balanço da Revolução de 1905 em artigos como As Lições da Insurreição de
Moscou (agosto de 1906), no qual retrucava a posição de Plekhánov (que
responsabilizara a radicalização do movimento pela derrota, afirmando que “não
se devia ter pegado em armas”) com a avaliação de que uma das grandes
conquistas da revolta popular – à custa de enormes sacrifícios – havia sido a
passagem da greve política geral à insurreição, elevando o movimento a um nível
superior de consciência. No momento de refluxo do movimento operário russo, o
texto No Caminho (janeiro de 1909) reforçava a necessidade de um
“trabalho prolongado de preparação de massas mais amplas”, com a criação de
células do partido “em todas as esferas de atividade”, de comitês operários
bolcheviques em cada empresa industrial, buscando sempre “um estreito contato
com as massas”. Cada medida de organização deveria contribuir para a coesão da
classe e para que o partido conquistasse, com a sua “influência ideológica”, o
papel dirigente nas organizações proletárias.
No período, outros
trabalhos de relevo foram publicados: Materialismo e Empiriocriticismo
(1909), crítica a uma variante de idealismo, e Imperialismo, Fase Superior do
Capitalismo (escrito em 1916), obra fundamental para a conceituação do
capitalismo em sua fase monopolista e de domínio do capital financeiro, marcada
pela exportação de capitais e pela partilha do planeta entre as nações de
capitalismo avançado. Assim, era possível caracterizar a Primeira Guerra
Mundial como expressão das disputas interimperialistas e como uma ação
totalmente reacionária, contra a qual era preciso se posicionar firmemente, do
ponto de vista do internacionalismo proletário e da revolução. Da análise acerca
do caráter internacional da guerra imperialista era ainda possível deduzir que
o capitalismo mundial havia alcançado o nível de amadurecimento necessário para
a revolução socialista, ou seja, as condições objetivas estavam dadas. Era
preciso fazer avançar as condições subjetivas.
A participação da Rússia
na Grande Guerra provocou o acirramento das contradições no interior da
sociedade, trazendo à tona novamente o movimento operário e camponês, com maior
protagonismo dos Sovietes. Em fevereiro de 1917, as manifestações populares promoveram
a queda do czar Nicolau II e tinha início o período do Governo Provisório,
dirigido pela burguesia liberal, com apoio dos mencheviques e socialistas
revolucionários (SRs ou “esseristas”), correntes reformistas que hegemonizavam
os sovietes. Lênin consegue voltar à Rússia e anuncia que, derrubada a
autocracia czarista e conquistada a revolução democrática burguesa, estava
aberta a fase da luta pela conquista do Estado proletário, através da revolução
socialista. Em Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução (Teses de Abril),
texto publicado no Pravda em 07 de
abril de 1917, Lênin percebeu a oportunidade histórica de deflagração
da revolução proletária a partir da mobilização popular em curso, mas provocou
a reação de incredulidade de parte dos militantes socialistas russos, quando afirmou
que a peculiaridade daquele momento consistia na transição da primeira etapa da
revolução – “que deu poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau
necessário de consciência e organização” – para a segunda etapa, que deveria
colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato. Lênin partia da
avaliação de que, na maior parte dos sovietes, os bolcheviques estavam em
minoria, o que exigia um paciente e firme trabalho de crítica ao governo e de
esclarecimento junto às massas acerca da necessidade de que o poder passasse às
mãos dos sovietes.
Nos meses anteriores à
Revolução de Outubro, Lênin travou uma dura batalha ideológica contra os
oportunistas e reformistas russos, representados centralmente pelos
mencheviques e socialistas revolucionários, que recusavam a opção da revolução
socialista e contentavam-se em ocupar cargos e ministérios no governo
provisório dominado pela burguesia, latifundiários e imperialistas. Lênin,
principalmente no mês de setembro, produziu textos de combate às vacilações e
traições dos reformistas, mas também dirigidos a convencer parte do Partido
Bolchevique, não totalmente crente das possibilidades objetivas da vitória
revolucionária do proletariado. Nos textos publicados no
período, tais como Uma das Questões Fundamentais da Revolução, Os
Bolcheviques devem tomar o poder e Marxismo e Insurreição[3], Lênin deixava claro que o
poder soviético significaria uma mudança radical no exercício do poder de
Estado. Não bastava tomar o poder de assalto, algo que de fato foi facilitado
pela degradação do Estado burguês em 1917, desgastado política e socialmente ao
manter o país na guerra a qualquer preço, preferindo atender às necessidades
dos imperialistas ingleses e franceses a fazer valer a vontade popular. O poder
dos sovietes representaria a destruição de todo o velho aparato de Estado, com
a sua consequente substituição por um aparelho novo e popular, verdadeiramente
democrático, a ser controlado pela maioria organizada e armada do povo, dos
operários, soldados e camponeses.
Entre maio e setembro de
1917, os acontecimentos e as lutas na Rússia haviam revertido o momento
anterior de inferioridade bolchevique no interior dos sovietes das capitais, os
quais passavam a pender para o lado dos revolucionários. Baseando-se ainda em
escrito de Engels sobre a “arte da insurreição” (Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, que, assinado por Marx,
foi publicado no New York Daily Tribune
em 1851 e 1852), Lênin afirmava categoricamente que a revolução estava na ordem
do dia, pois, a partir dos eventos de julho e agosto de 1917, estavam dadas as
condições objetivas e subjetivas para o sucesso da empreitada revolucionária.
Lênin referia-se às jornadas de julho e à “kornilovada”. As manifestações de
julho foram desencadeadas por um movimento de soldados, marinheiros e
operários, enfurecidos contra o governo provisório e suas ordens militares,
notoriamente infrutíferas e irresponsáveis. As demonstrações de massa ocorreram
em Petrogrado, e os manifestantes gritaram as palavras de ordem dos
bolcheviques, como “todo o poder aos Sovietes”, exigindo que a direção máxima
dos Sovietes assumisse o poder, o que foi negado pelo Comitê Executivo Central,
dominado por socialistas revolucionários e mencheviques. O movimento foi
massacrado pelo governo provisório, que atacou o Partido Bolchevique, empastelando
seus jornais e gráficas e mandando prender as lideranças operárias. No episódio
da ação contrarrevolucionária liderada pelo general czarista Kornilov, em
agosto de 1917, o governo provisório, sob comando de Kerenski, adotou postura
ambígua, ao insuflar inicialmente a revolta, para se ver livre dos
bolcheviques. Mas foram estes que enfrentaram decisivamente a tentativa de
golpe de Kornilov e continuaram a denunciar o governo provisório e seus
cúmplices socialistas revolucionários e mencheviques. A kornilovada foi
liquidada pelos operários e camponeses liderados pelo Partido Bolchevique.
Lênin, então, percebia
que, após estes dois grandes acontecimentos históricos, as massas haviam
vivenciado experiências decisivas no enfrentamento aos seus inimigos de classe,
e era cada vez mais evidente o desmascaramento dos reformistas e oportunistas,
que, ocupando ministérios no governo provisório, assumiam na prática a defesa
dos interesses burgueses. Lênin enfatizava que, por tudo isso, a batalha pela
hegemonia no interior dos Sovietes estava sendo ganha pelos bolcheviques. E
dizia que, naquele exato momento histórico, existiam as condições objetivas e
subjetivas para a tomada do poder, pois “temos a nosso favor a maioria da
classe que é a vanguarda da revolução, a vanguarda do povo, capaz de arrastar
as massas”. Não há dúvidas de que, por meio da leitura desses textos, podemos
concluir que, para Lênin, uma das questões centrais na luta e conquista do
poder na Rússia foi a batalha ideológica travada no interior do Sovietes, para
tirar da influência nefasta de mencheviques e esseristas as mais valorosas
lideranças operárias e camponesas, as quais, sob a firme direção dos
bolcheviques, comandaram a Revolução de Outubro. Portanto, a questão da
hegemonia foi um aspecto central da vitória bolchevique em 1917, fato que, com
certeza, se verificaria também nas demais revoluções socialistas do século XX.
Também é dessa fase
imediatamente anterior à Revolução de Outubro o livro O Estado e a Revolução,
escrito em agosto e setembro de 1917. Com base nos textos de Marx sobre as
lutas de classes na França do século XIX e, em especial, sobre a Comuna de
Paris, Lênin sistematizou as ideias do fundadores do materialismo histórico
acerca do Estado capitalista e da ditadura do proletariado, reafirmando o
caráter de classe do Estado e desmistificando o pensamento burguês segundo o
qual a democracia política seria inerente à ordem fundada pelos liberais. Buscou
atualizar os princípios teóricos marxistas sobre a questão do poder para
aplicá-los na luta política em tempos de capitalismo monopolista e de
imperialismo. Segundo seus prognósticos à época, estavam colocadas as condições
para a revolução socialista mundial, pois o imperialismo, identificado por ele
como “capitalismo parasitário ou em estado de decomposição”, um “capitalismo
agonizante”, teria aberto a “era das revoluções proletárias”. A consolidação do
capitalismo monopolista e do imperialismo havia representado, ainda, um
retrocesso nas práticas democráticas conquistadas em vários países graças às
intensas lutas operárias travadas ao longo do século XIX. Na perspectiva do
líder bolchevique, o Estado convertia-se, então, num instrumento direto a
serviço do grande capital, conforme aponta José Paulo Netto no texto Lênin e a instrumentalidade do Estado[4], análise esta que
antecipava a apreensão sobre a tendência – hoje muito evidente – da completa
incompatibilidade entre a ordem capitalista e a democracia política.
Esse tema seria
revisitado quando da polêmica com Kautsky em 1918, em resposta a uma brochura
do socialista austríaco intitulada Ditadura
do Proletariado. Em A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky,
Lênin atacou frontalmente as ideias revisionistas daquele que, desde o período
da Grande Guerra, havia migrado para posições reformistas, deturpando vários
princípios teóricos do marxismo e tentando transformar Marx num “vulgar
liberal”. Lênin refutava a mistificação de Kautsky em torno da democracia
burguesa, ao falar de “democracia pura” na sociedade marcada pelo antagonismo
de classe. Lembrando que mesmo a democracia burguesa mais avançada jamais
deixará de lançar mão de seu aparato repressivo quando a burguesia se sente
ameaçada pela mobilização dos trabalhadores, escrevia:
Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde
não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a
possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de
guerra, etc, «em caso de violação da ordem», de fato em caso de «violação» pela
classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar
como escrava. Kautsky embeleza desavergonhadamente a democracia burguesa, nada
dizendo, por exemplo, daquilo que fazem os burgueses mais democráticos e
republicanos na América ou na Suíça contra os operários em greve.[5]
Concluída a revolução
socialista em outubro de 1917, Lênin liderou o governo bolchevique no
enfrentamento à guerra civil incensada pelas forças reacionárias russas, apoiadas
pelas nações imperialistas, até 1921. Em março de 1919 em Moscou, esteve à
frente da fundação da Internacional Comunista, criada na perspectiva de se
tornar uma “União Mundial das Repúblicas Socialistas Soviéticas” e de promover
em todo o mundo a luta pela afirmação da ditadura do proletariado no lugar da
democracia burguesa. Ultrapassado o período que ficou conhecido como “comunismo
de guerra”, com a vitória das forças proletárias, Lênin comandou a recuperação
econômica da Rússia, implantando a NEP (Nova Política Econômica), através da
qual medidas capitalistas foram utilizadas para suplantar o enorme atraso
estrutural em que se encontrava o país e para estabelecer as bases necessárias
à construção da nova sociedade socialista.
No III Congresso da IC, realizado em 1921, com base em seu texto Esquerdismo,
doença infantil do comunismo, Lênin passava a reconhecer que a onda
revolucionária havia regredido, centralmente na Europa, daí a necessidade de um
trabalho dos comunistas no interior dos sindicatos dominados por direções
reacionárias, além da participação nas eleições instituídas pelo calendário
político democrático-burguês, tendo em vista a conquista de cadeiras, pelo
movimento operário, nos parlamentos dos países capitalistas. Lênin percebia que
os partidos comunistas fora da Rússia Soviética tinham pequena inserção junto
às massas e insistiam em adotar táticas revolucionárias calcadas na experiência
dos bolcheviques, as quais não demonstravam ser adequadas à realidade social,
econômica e política do ocidente capitalista. Lembrava Lênin que os
bolcheviques necessitaram de quinze anos para se preparar como uma força
política organizada para a conquista do poder na Rússia, afirmando que a
vitória sobre a burguesia seria impossível sem uma “guerra prolongada, tenaz,
desesperada, de vida ou de morte; uma guerra que exige tenacidade, disciplina,
firmeza, inflexibilidade e unidade de vontade”. Afinal, tratava-se de enfrentar
um poder que não residia apenas na força do capital e na solidez das suas
relações internacionais, mas igualmente na “força
do costume, na força da pequena produção”[6].
O dirigente bolchevique indicava a necessidade de uma revolução que fosse
também capaz de promover transformações de ordem moral e cultural para vencer a
ideologia do capitalismo.
Morto aos 53 anos, em 21
de janeiro de 1924, após acidentes vasculares decorrentes de uma saúde
debilitada por vários anos de intensa dedicação ao trabalho revolucionário, Lênin
deixou um legado político que provocou a reação raivosa da burguesia e da
socialdemocracia, que sempre buscaram demonizá-lo e tudo o que ele representa.
Em contrapartida, para os revolucionários e trabalhadores conscientes da
necessidade de substituir a ordem capitalista e pelo socialismo, há a certeza
de que seu pensamento mantém-se como um guia indispensável para a ação
transformadora. Nos dias de hoje, em que ficam cada vez mais evidentes a
incompatibilidade do capitalismo com a democracia (fato particularmente visível
no Brasil de janeiro de 2014, quando o governo democrático petista acaba de
baixar uma portaria em defesa da Lei e da Ordem, pela qual deixa claro que o
aparato repressivo do Estado será usado contra as manifestações populares) e a
impossibilidade de realizar qualquer reforma no interior do sistema que não
seja em favor da própria burguesia, os trabalhadores continuarão encontrando no
marxismo revolucionário de Lênin o indicativo preciso da união da teoria com a
prática, para a organização das lutas de resistência e enfrentamento aos
imperativos do capital, com vistas à construção da alternativa socialista, no
rumo do comunismo.
[1] Conferir o texto de Michael Löwy “Marxismo e Positivismo no
pensamento da Segunda Internacional” em As
Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na
sociologia do conhecimento, Cortez Editora, 6ª edição, p. 117.
[2] V. I. Lênin – Duas Táticas
da Socialdemocracia na Revolução Democrática, Lisboa, Editorial Avante!,
1978, p. 98.
[3] Estes textos foram reunidos por Slavoj Zizek no livro Às Portas da Revolução: escritos de Lênin de
1917, São Paulo, Boitempo Editorial, 2005. Também encontram-se disponíveis
na página da Fundação Dinarco Reis (http://pcb.org.br/fdr), em Biblioteca
Comunista.
[4] Ver Netto, José Paulo – Marxismo
Impenitente: contribuição à história das ideias marxistas, São Paulo,
Cortez Editora, 2004, pp. 109-138.
[5] Lênin – A Revolução
Proletária e o Renegado Kautsky em http://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/cap02.htm.
[6] ____ - Esquerdismo, Doença
Infantil do Comunismo em http://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm.