sábado, 22 de dezembro de 2012


MEMÓRIAS DA TORTURA

O JORNALISTA DERMI AZEVEDO HOJE CONVIVE COM OS REFLEXOS DO MAL DE PARKINSON, QUE DESCOBRIU EM 2007 - FALA MAIS PAUSADAMENTE E TAMBÉM NÃO ANDA COM A MESMA VELOCIDADE QUE TINHA QUANDO FOI TORTURADO DUAS VEZES EM SÃO PAULO, ENTRE O FINAL DA DÉCADA DE 60 E INÍCIO DE 70.

11:55 15 de Dezembro de 2012
 
Henrique Arruda
DO NOVO JORNAL
Quando olha para trás é até difícil enxergar o ponto de partida de um caminho que ele percorre há mais de 30 anos. As curvas foram muitas, mas nenhuma tão marcante quanto a que começou a atravessar a partir de 1964 com o início da ditadura militar no Brasil.

O jornalista Dermi Azevedo hoje convive com os reflexos do Mal de Parkinson, que descobriu em 2007 - fala mais pausadamente e também não anda com a mesma velocidade que tinha quando foi torturado duas vezes em São Paulo, entre o final da década de 60 e início de 70. Mas nem mesmo os recentes desafios são capazes de calar sua voz ou passar uma borracha na memória.

O desejo de ser jornalista começou quando ainda era um jovem acólito em Currais Novos e o monsenhor Paulo Herôncio de Melo lhe pedia para que, após as missas, Dermi lhe transmitisse os recados ano-tados. “Era eu quem lembrava o monsenhor das obrigações diárias, tudo anotado. A partir disso eu fui pegando gosto pela escrita”, lembra o jornalista, que se diz inspirado pelos colegas que gostam de boas doses de literatura em seus textos.
“Sempre gostei muito de Graciliano Ramos, Rubem Braga, Rachel de Queiroz, Berílo Wanderley, Gabriel Garcia Márquez e todos que vão no campo do ficcionismo”, explica. A TV está ligada em um filme qualquer da Sessão da Tarde enquanto Dermi, repousando no quarto nº 7 do Centro do Trabalhador em Educação, analisa o futuro do jornalismo. Ele acredita que o impresso não vai morrer.

“O hábito de leitura está impregnado há séculos e esse aspecto tátil nunca será superado. Gostamos de ter um objeto nas mãos e não gostamos que tudo já venha mastigado. Quando o audiovisual começou, também se dizia que iria substituir o impresso”, argumenta. Por mais que também esteja “online” e reconheça que a internet traga rapidez, ele condena a falsa impressão de diálogo do meio. “Falta aprofundamento nessa troca que os comentários oferecem. Na minha opinião é um diálogo superficial”, critica.

O garoto natural de Jardim do Seridó, quando chegou à cidade grande, preferiu prestar vestibular para Serviço Social porque o aprofundamento nos direitos humanos era uma meta estipulada desde o início. O ano era 1967. “Entender os direitos e deveres de uma pessoa me iluminou bastante nos trabalhos jornalísticos”, garante.
O curso teve que ser interrompido pouco tempo depois de ter começado. Mas antes de se afastar, Dermi foi eleito o primeiro presidente do Centro Acadêmico Dom Helder Câmara, da Escola de Serviço Social, e iniciou seus trabalhos no movimento estudantil preparando tudo o que fosse necessário para o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, no interior de São Paulo. Foi nesta etapa de sua vida que o jornalista tomou ainda mais consciência de seu papel na luta a favor de uma “sociedade livre, democrática e soberana”.

O congresso da UNE em São Paulo reservaria algu-mas surpresas, sendo a principal delas a sua primeira prisão. Ao chegar a Congonhas, ele e seus companheiros foram levados vendados para o sítio onde iria ser realizado o congresso com mais de 600 estudantes, como ele também conta nas páginas de “Travessias Torturadas”, livro que fez questão de lançar em Natal na última sexta-feira, 14. “O avião não tinha pressurização, então chegamos todos surdos”, recorda, dando um sorriso nostálgico.

A manhã estava fria e chuvosa, pelo que se lembra, quando a Força Pública e os demais órgãos de repressão invadiram o congresso e leva-ram os estudantes em cima de caminhões para o presídio Tiradentes, no centro velho de São Paulo. “Foi bem menos traumática do que minhas outras prisões porque éramos vários, eles nem sabiam direito o que fazer com tantos estudantes. Fiquei em uma cela com 18 colegas, onde só cabiam nove. A gente se revezava para dormir. En-quanto um grupo deitava, o outro ficava em pé”, conta.

Em 69 ele retorna à Natal, mas para a sua segurança decide se exilar no Chile, onde existia um governo socialista. E assim ele cruzou a fronteira clandestinamente disfarçado de monge. A permanência no estrangeiro durou até 1971, quando Dermi não aguentou mais ficar distante de sua realidade política e voltou ao Brasil.

Como não queria abandonar o ofício de jornalista profissional, mesmo tendo que medir bem todas as palavras que fosse usar, Dermi começou a trabalhar nas redações do “Última Hora”, dirigido por Samuel Weiner, mas ao longo da carreira acumulou no currículo também a passagem pelas redações do Estadão, Folha de São Paulo e Jornal da Tarde.

Sobre os tempos que passou nas redações potiguares, lembra que sua geração de jornalistas era ativa, que fundou, por exemplo, a Cooperativa dos Jornalistas de Natal, para diminuir as “brigas” entre os homens da notícia e os diagramadores.

“Não era diferente do jornalismo que se faz hoje, mas o espírito investigativo era maior. Dava-se mais valor à reportagem”, compara. “A minha geração é a mesma desses antigões que hoje em dia estão aí na imprensa potiguar. Falo de Vicente Serejo, Albimar Furtado, Jomar Morais, Cassiano Arruda Câmara e tantos outros”, completa.

Por aqui passou pela Tribuna do Norte e pelo Diário de Natal. Das matérias que fez, lembra muito de duas. “Uma sobre a utilização de laparoscopia para a esterilização de mulheres pobres e outra que, na verdade, foi uma série sobre a mineração no RN, mostrando como o subsolo era explorado retirando tungstênio para a indústria armamentista e como essas empresas pagavam pessimamente os funcionários”, recorda.
DITADURAS SÃO IGUAIS
Quatorze de janeiro de 1974. Era fim de tarde e ele ainda estava na redação da Folha de S. Paulo quando foi preso e levado ao DEOPS. “Foram duas prisões neste ano e entre elas eu estava lendo Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos e isso me marcou muito porque achei muito chocante comparar o que ele viveu no Estado Novo com o que eu estava vivendo anos depois. Ou seja, toda ditadura é igual”, afirma.
Pressionado para con-fessar sua suposta filiação ao PC do B, Dermi foi colocado no Pau de Arara, levou choque nos órgãos genitais, tapas nos ouvidos (o que eles chamavam de telefone) e o que mais lhe impressionava durante toda a situação era como ele poderia ser tratado como um bandido. “É uma sensação muito estranha ser preso. Eu ouvia nas conversas eles falando ‘O elemento já está preso’ e me perguntava como eu poderia ser um elemento, como poderia ser inimigo. Inimigo de quem?”, lembra.

Na segunda vez que lhe prenderam, ainda em 74, o motivo foi um álbum que ele montou para sua esposa contendo diversas fotos de família e de ícones da época. “Tinha muita gente e eles me interrogaram sobre cada personagem do álbum, desde Che Guevara até Fidel Castro. Nunca mais eu vi o álbum depois disso, ou ele sumiu, ou está escondido em algum lugar com alguém”, conta.

Além de receber a dor da tortura, Dermi carrega até hoje a dor maior de saber que sua família também foi torturada, já que a ditadura também pegou sua esposa e seu filho de apenas 1 ano e oito meses na época. “Minha esposa sofreu praticamente os mesmos traumas que eu; e meu filho eles jogaram no chão. Até hoje ele carrega no rosto as sequelas do espancamento”, diz.

“O senhor aceitaria passar por tudo isso novamente hoje em dia?”, questiona o repórter após uma pequena pausa na conversa. “Passaria pelas mesmas situações para garantir uma vida mais digna para todos porque isso nunca me silenciou e nunca deixei me silenciar. Pretendo até o final da minha vida não ficar calado diante uma situação de injustiça”, responde.
UMA VIDA DE NOTÍCIA
Se pudesse noticiar al-guma coisa que ele não teve a oportunidade, Dermi escolhe dois fatos “Pode inventar tam-bém alguma coisa que não aconteceu, né?”, pergunta. “Pode”, aceita o repórter. Para começar, ele diz que gostaria de ter noticiado a permanência do Papa João Paulo I no pontífice, porque, segundo Dermi, João Paulo I estava prestes a fazer revoluções profundas no catolicismo.

“Como, por exemplo, aceitar a ordenação de mulheres, acabar com o celibato, e há quem diga ainda que ele iria redimir Martinho Lutero. Gostaria de ter noticiado que ele permaneceu e promoveu essas mudanças, mas infelizmente morreu antes ou, como dizem também, foi vítima de um complô dentro do próprio Vaticano”, defende.
A segunda notícia que gostaria de dar é o fim da impunidade para pessoas desaparecidas na época da ditadura. “Gostaria que todos esses arquivos fossem abertos”, diz o jornalista acreditando também que os casos não ficarão para sempre sem uma solução. Para isso, a Comissão Nacional da Verdade, empossada pela presidente Dilma em maio deste ano, será essencial.

Hoje Dermi Azevedo é aposentado por ter adquirido mal de Parkinson e também por ser anistiado político, mas mesmo assim não pretende se afastar do jornalismo. Agora se dedica aos livros que pretende escrever até o final da carreira. O primeiro foi lançado na última sexta-feira, 14 em Natal. “Travessias Torturadas” conta detalhes do que sofreu com a ditadura militar.

Os próximos provavel-mente serão “Direitos Humanos: Teoria e Prática” e uma compilação, ainda sem nome, de suas melhores matérias publicadas ao longo da carreira. “Difícil é saber o que botar né? Mas já estou organizando”, garante. Sobre o livro lançado em Natal, Dermi garante que não sofreu ao relembrar de toda a história, só teve dificuldade mesmo para saber até que ponto contar.