quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

50 anos do AI-5: os integrantes da equipe de Bolsonaro considerados ‘subversivos’ e ‘infiltrados comunistas’ pela ditadura

Estudantes pedem eleições diretas na década de 1980, no Rio Direito de imagemInstituto Durango Duarte / reprodução
Image caption Estudantes de teatro pedem eleições diretas na década de 1980, no Rio de Janeiro
Ao debater o regime militar (1964-1985), integrantes da equipe de transição e do futuro governo Bolsonaro dizem que a repressão da época - que deixou mais de 400 pessoas mortas e desaparecidas, de acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade - ocorria no contexto de uma guerra: entre o Estado brasileiro e grupos armados que tentaram impor o comunismo.
Mas um levantamento da BBC News Brasil nos arquivos daquela época mostra que a repressão e a vigilância não se resumia à esquerda armada. Até mesmo pessoas que hoje fazem parte da equipe de transição do presidente eleito foram vigiadas de perto pelo aparato de inteligência dos militares - alguns, inclusive, foram considerados "infiltrados comunistas" e "subversivos".
"(O golpe de 64) Foi um contragolpe contra um movimento crescente de comunistas. Os militares assumiram o poder, e tivemos uma guerra", disse ao jornal O Globo o cientista político e professor aposentado da UnB, Antônio Flávio Testa. Ele participou do grupo de militares e intelectuais que formulavam propostas para Bolsonaro, e hoje faz parte da equipe de transição. Na década de 1970, porém, o próprio Testa foi alvo de um inquérito aberto contra si e chegou a ser detido "por algumas horas", por participar de atividades ligadas ao movimento estudantil.

Quem investigava?

O Serviço Nacional de Informações (SNI) foi criado em junho de 1964, poucos meses depois do golpe militar - que, em 31 de março daquele ano depôs o presidente João Goulart e estabeleceu um regime autoritário que durou até 1985.
O SNI foi idealizado pelo general Golbery do Couto e Silva, e era composto por um Agência Central, em Brasília, e agências e escritórios espalhados por todo o país e em todos os órgãos do governo. O SNI existiu até 1990, quando foi substituído por uma estrutura menor e sob controle civil. O conjunto todo era chamado de "comunidade de informações" do regime.
Artistas em passeata nos anos 1960 Direito de imagemInstituto Durango Duarte / reprodução
Image caption Chico Buarque (dir., segurando cartaz) e outros artistas na Passeata dos Cem Mil, em 1968

Como os integrantes da equipe de transição de Bolsonaro e do futuro governo aparecem nos arquivos do SNI?

O futuro presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o economista Carlos Doellinger, foi nomeado num documento de 1985 como "infiltração comunista" no governo de José Sarney, que havia acabado de tomar posse. Já o guru econômico de Bolsonaro, Paulo Guedes, teve sua ficha levantada quando pediu um passaporte de viagem, nos anos 1970 - mas nada pesava contra ele.
O cientista político Antônio Flávio Testa, que fez parte do grupo de formuladores das políticas de Bolsonaro e integra o gabinete de transição, era considerado "subversivo" porque participava do movimento estudantil da Universidade de Brasília (UnB), nos anos 1970, e chegou a ser detido por algumas horas, segundo contou à reportagem.
O próximo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, foi vigiado por ser estrangeiro e por participar de congressos de filosofia na década de 1980. A inteligência da ditadura também mencionou textos dele contra a Teologia da Libertação, uma ala de esquerda da Igreja Católica, em análises de conjuntura.
O futuro ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno - que foi comandante militar na Amazônia e chefe da missão de paz no Haiti, a Minustah - aparece como integrante de uma chapa apoiada pelo governo do general João Figueiredo na disputa pelo Clube Militar. Dickson Melges Grael, pai dos velejadores Lars e Torben Grael, fazia parte da chapa adversária.
Reprodução de documento que menciona o pai de Lars e Torben Grael, Dickson Melges, como 'indisciplinado' Direito de imagemArquivo Nacional / reprodução
Image caption O documento que menciona o pai de Lars e Torben Grael, Dickson Melges, como 'indisciplinado'
As pessoas mencionadas nos documentos foram procuradas pela reportagem, mas só Antônio Flávio Testa quis comentar o assunto.

'Até quem nunca sonhou em ser comunista era vigiado'

A maioria das pessoas monitoradas pela inteligência do regime militar nunca teve qualquer envolvimento com o comunismo organizado ou com a esquerda, de acordo com o historiador especializado em história política Antônio Barbosa.
Isso porque quando o SNI surgiu, em 1964, o mundo vivia uma tensão crescente entre os Estados Unidos - capitalista - e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, capitaneada pela Rússia comunista. Ao tomarem o poder no Brasil, os militares justificaram o novo regime como uma forma de evitar que o país aderisse ao bloco soviético - e esse discurso se manteve ao longo de todo o período militar, diz Barbosa, que é professor da Universidade de Brasília (UnB).
"Depois de 1961, quando Cuba se declara marxista-leninista, a Guerra Fria atravessou o Oceano Atlântico e veio da Europa para as Américas. Nesse momento ocorre uma série de golpes militares de direita, anticomunistas, na América Latina, inclusive no Brasil", diz ele.
Tanques de guerra na rua Direito de imagemInstituto Durango Duarte / reprodução
Image caption Tanques de guerra nas ruas do Rio de Janeiro, em abril de 1964
"Muito do trabalho dos órgãos de segurança, como o SNI, era o que eles chamavam de 'luta contra a subversão'. Na verdade, era a luta contra as esquerdas (...), que ia muito além da parcela que fazia a luta armada. O espectro dos inimigos do regime era muito amplo. Entravam aí liberais, democratas de forma geral, socialistas, e qualquer um que não rezava pela cartilha do regime", diz ele.

De 251 acervos, só 40 foram encontrados até hoje

Ao longo dos anos, o SNI produziu um acervo gigantesco. Os dossiês principais eram identificados com a sigla ACE - Arquivo Cronológico de Entrada - e iam sendo numerados em ordem direta, conforme eram produzidos. "Só na Agência Central, a numeração (dos ACEs) chegou a cem mil em 1978. E aí eles zeraram a conta. É por isso que, a partir deste ano, a numeração fica baixa", explica o historiador Pablo Franco, que trabalha com o acervo da ditadura no Arquivo Nacional, onde o material está guardado hoje.
Infelizmente, apenas uma pequena parte desse material se salvou. O restante não foi encontrado até hoje, e o destino desses documentos é incerto.
"O SNI era a 'cabeça' do sistema de informações, mas os outros órgãos que foram criados no regime alimentavam o SNI. Então você tinha o Centro de Informações do Exército, o Cenimar (da Marinha) e o Cisa (da Aeronáutica). Eles vigiavam os militares das forças, mas também a sociedade de forma geral. Dentro de cada órgão público, de cada universidade, tinha uma estrutura dessas", conta Pablo.
Foto de estudantes da UnB em arquivo da ditadura Direito de imagemArquivo Nacional / reprodução
Image caption Estudantes e professores identificados ao participar de manifestações. Na foto, estudantes da UnB
"A gente sabe por fontes documentais, por exemplo, que dentro do Ministério da Educação tinha uma DSI (Divisão de Segurança e Informações). Mas o MEC nunca encontrou os papéis produzidos por essa Divisão. A gente sabe que existiu, mas não se sabe o paradeiro dos documentos", diz ele.
Desde 2008, historiadores do Arquivo Nacional que investigam esse período histórico já identificaram 251 agências e diretorias de inteligência, mas apenas 40 dessas tiveram seus documentos recuperados, segundo Pablo.

Vélez Rodríguez e a Teologia da Libertação

Nascido em Bogotá, na Colômbia, e naturalizado brasileiro, Vélez Rodríguez é filósofo e teólogo de formação. Chegou ao cargo de ministro da Educação do futuro governo depois de indicado pelo também filósofo e guru conservador Olavo de Carvalho. Em seu blog, Vélez diz que os brasileiros viveram nos últimos anos como "reféns de um sistema de ensino alheio às suas vidas e afinado com a tentativa de impor, à sociedade, uma doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista, travestida de 'revolução cultural gramsciana'".
Como professor - e estrangeiro - Vélez não escapava do olhar atento da Comunidade de Informações do regime.
Num documento de 1985, a Assessoria de Segurança e Informações (ASI) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) pede uma checagem das informações sobre ele na base de dados do Serviço Nacional de Informações (SNI), antes dele assumir o cargo de professor. Outro trecho de dossiê do mesmo ano registra a presença de Vélez num seminário de filosofia organizado pela Arquidiocese do Rio de Janeiro e pela Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos, em outubro daquele ano - e visto com desconfiança pelos militares.
Reprodução de artigo de Vélez Rodríguez em dossie do SNI Direito de imagemArquivo Nacional / reprodução
Image caption Artigos de Ricardo Vélez Rodríguez sobre a Teologia da Libertação eram às vezes mencionados pelos militares em análises internas
Além disso, os relatórios do SNI também citam Vélez em alguns momentos como autor de estudos e artigos críticos à Teologia da Libertação - uma ala de esquerda da Igreja Católica, surgida na América Latina, e para a qual os ensinamentos de Jesus incluem a luta contra injustiças sociais.
Um dos dossiês, da década de 1980, reproduz um trecho de um artigo do futuro ministro, no qual ele afirma que a corrente do teólogo Leonardo Boff representava uma "progressiva penetração da URSS (União Soviética) no nosso continente, através da politização e da radicalização (...)". Em outro artigo, este publicado no jornal O Estado do Paraná e citado pelos militares, Rodríguez diz que a Teologia da Libertação faz uma "releitura tendenciosa" do texto bíblico.
Reprodução de artigo de Vélez Rodríguez em dossie do SNI Direito de imagemArquivo Nacional / reprodução
Image caption Os artigos de Vélez sobre a Teologia da Libertação eram lidos pelo SNI, e citados em

Augusto Heleno contra o pai de Lars Grael

Paranaense de Curitiba, Augusto Heleno Ribeiro Pereira é o militar mais próximo do presidente eleito Jair Bolsonaro. Antes mesmo do começo da disputa eleitoral, comandava as reuniões do grupo de formuladores do programa de governo do candidato do PSL. Quase foi candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, no lugar de Hamilton Mourão - o que só não aconteceu porque o partido de Heleno, o PRP, não topou.
Nos papéis da ditadura já digitalizados e acessíveis ao público, Heleno aparece uma única vez. Trata-se de um dossiê de janeiro de 1984 sobre a eleição para a diretoria do Clube Militar, no Rio de Janeiro, que aconteceria em maio.
Heleno - que na época era major do Exército - integrava a chapa "governista" na disputa pelo comando do clube. Conforme o dossiê, o grupo dele tinha o apoio do ministro do Exército da época, Walter Pires de Carvalho e Albuquerque. A chapa de Heleno era encabeçada por um general de três estrelas chamado Tasso Villar de Aquino. Heleno era suplente do Conselho Fiscal.
Estudantes identificados em fotos feitas pelo aparato de inteligência Direito de imagemArquivo Nacional
Image caption Estudantes identificados em fotos feitas pelo aparato de inteligência
Do outro lado estava a chapa "Soberania Nacional".
"Dentre os integrantes desta Chapa ('Soberania') encontram-se militares contestadores e indisciplinados, como os coronéis Tarcísio Célio Carvalho Nunes e Dickson Melges Grael, cujos comportamentos inconvenientes são sobejamente conhecidos", diz um trecho do dossiê.
Dickson Melges Grael é pai dos velejadores Lars e Torben Grael. No ano seguinte, 1985, ele publicou um livro revelando informações sobre o atentado do Riocentro - quando dois militares tentaram explodir uma bomba num show de música em comemoração ao Dia do Trabalhador, no Rio.
Contando com o apoio do governo do então presidente João Figueiredo, a chapa de Heleno ganhou - teve 4.175 votos contra 2,5 mil do grupo de oposição.

Futuro presidente do Ipea era visto como"infiltração comunista"

Em novembro deste ano, o economista carioca Carlos Von Doellinger foi indicado pelo guru econômico de Bolsonaro, Paulo Guedes, para assumir a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Doellinger já foi pesquisador do Ipea - também deu aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidiu o Banco do Estado do Rio, o antigo Banerj. Mas em maio 1985, no primeiro governo civil, ele era visto como uma "infiltração comunista" pelo Cisa (Centro de Informações da Aeronáutica).
Carlos Von Doellinger Direito de imagemArquivo Nacional / reprodução
Image caption Carlos Von Doellinger foi incluído numa lista de "infiltrados comunistas" em 1985
Doellinger foi para o governo em 15 de março de 1985, quando o maranhense José Sarney tomou posse como o primeiro presidente civil depois do ciclo de generais no poder no Brasil. No mesmo dia, o Diário Oficial trouxe a nomeação da Esplanada de Sarney. Francisco Dornelles, hoje governador interino do Rio, foi escolhido ministro da Fazenda. E levou consigo Doellinger, que foi nomeado secretário-geral adjunto do Ministério.
Em maio de 1985, o Cisa produziu um dossiê batizado de "Infiltração comunista nos diversos setores de atividade". "(...) os elementos abaixo, nomeados para cargos e funções de confiança em órgãos do Poder Executivo, registraram antecedentes negativos neste Centro", dizia o documento.
A lista de pessoas com "antecedentes" é extensa e ideologicamente heterogênea. Inclui Cláudio Lembo (que seria governador de SP pelo PSDB), Dilson Funaro (veio a ser ministro da Fazenda); Dorothea Werneck (chegou a ministra do Trabalho); Carlos Alberto Menezes Direito (foi ministro do STF); Cláudio Fonteles (ex-Procurador-Geral da República) e até o jornalista de economia Carlos Alberto Sardenberg.
O documento segue descrevendo outras esferas em que teria havido "infiltração comunista", inclusive na reformulação da educação superior.
Embora o governo já fosse civil, o SNI continuou existindo, e sob o comando de militares. O órgão só foi desmantelado completamente em 1990.
Carlos Von Doellinger acabou deixando o governo poucos meses depois, em agosto de 1985. Há outros documentos que mencionam o economista - geralmente informes sobre sua participação em congressos da área.

Ex-professor da UnB considerado "subversivo"

Estudantes identificados em fotos feitas pelo aparato de inteligência Direito de imagemArquivo Nacional / reprodução
Image caption Antônio Flávio Testa (com a letra 'A' sobre si) identificado em foto da ASI-UnB, durante manifestação
Antônio Flávio Testa é cientista político e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), além de assessor técnico do Senado Federal. Antes mesmo do começo da campanha oficial, colaborou com o grupo de militares e especialistas responsáveis por formular propostas para Jair Bolsonaro. Próximo dos generais Augusto Heleno e Oswaldo Ferreira, Testa disse ao jornal O Globo que seu envolvimento com o grupo não envolve identificação ideológica.
"Eu não sou de esquerda nem de direita. E não considero Bolsonaro de direita, nem Lula de esquerda. São dois programáticos", disse ele ao jornal O Globo, em setembro de 2018.
Na década de 1970, porém, Testa era estudante de graduação da UnB - e envolvido com o movimento estudantil da época. Por isso, foi alvo de vigilância constante da Assessoria de Segurança e Informações (ASI) da UnB, que era o braço do SNI dentro da universidade.
Em 1976, Testa integrava uma das chapas que disputou o comando do Diretório Central dos Estudantes (DCE), a principal entidade estudantil da universidade. Concorreu como diretor de Esportes, na chapa Oficina.
Inquérito sobre Antonio Flavio Testa Direito de imagemArquivo Nacional / reprodução
Image caption Um inquérito contra Testa foi instalado, mas ele disse que não teve de responder realmente ao feito
Para a ASI da UnB, tanto o grupo de Testa quanto a chapa adversária, batizada de Unidade, eram "subversivas". "Os panfletos distribuídos por ambas as chapas continham incitações à indisciplina (...), além de aleivosias ao Governo e à Administração da UnB. (...) Além de conter incitações à luta de classes, à discórdia e à desordem". A eleição nunca aconteceu: foi suspensa pela direção da universidade, e os integrantes das duas chapas - inclusive Testa - tiveram inquéritos abertos contra si.
À reportagem da BBC News Brasil, testa disse que não respondeu realmente ao inquérito, e que o episódio não trouxe maiores consequências para ele. "Nada (de consequência). Fiquei detido algumas horas", disse.
O nome de Antônio Flávio Testa aparece em vários outros documentos produzidos pela ASI-UnB ao longo da década de 1970. Toda participação numa palestra ou protesto eram devidamente registradas pelo braço do SNI na universidade, às vezes inclusive com fotografias.
Pouco depois da publicação da reportagem, Testa procurou a BBC News Brasil para frisar que nunca foi, "de jeito nenhum", um "subversivo".
"Sou karateca, dava aulas no DCE, daí a fama. Me chamaram para compor a chapa dos estudantes, como diretor de Esportes. Apenas isso. nada político, só treinos. Era e sou ainda muito conhecido. Me relaciono com todo mundo", conta ele, sobre o período - ele acrescenta que nunca foi "contra o capitalismo", e que considera o termo "subversivo" obsoleto.
"Eram outros tempos", diz ele. "Se você fosse poeta e escrevesse letras de música para festivais estudantis, tinha que passar pelo crivo da censura. Foi um tempo de grande desconfiança".
"Depois (da UnB), passei em concurso para antropólogo da Funai em pleno regime militar. Se fosse subversivo, não teria sido aceito. Trabalhei em áreas sensíveis, delimitando terras indígenas (...). Nunca tive problemas com militares. Dei aulas de karatê para os Fuzileiros Navais e no RCG (Regimento de Cavalaria de Guardas) do Exército. Tive centenas de alunos militares", disse ele à reportagem.
*Este texto foi atualizado às 19h35 do dia 15/12/2018 para incluir mais informações.
**Às 20h30, foi atualizdo novamente para corrigir o nome do Serviço Nacional de Informações (SNI), grafado incorretamente como 'Sistema Nacional de Informações' na versão anterior do texto.
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sábado, 18 de agosto de 2018

O que acontece se a candidatura de Lula for definitivamente negada

Militante com máscara de papel representando o rosto de LulaDireito de imagemAFP
Image captionMesmo com a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU na última sexta-feira, é improvável que Lula concorra ao Planalto
A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conquistou uma importante vitória ao obter nesta sexta-feira uma decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) recomendando ao Brasil que garanta seus direitos políticos. Os efeitos dessa decisão, porém, tendem a ser mais políticos do que jurídicos, ao reforçar o discurso de perseguição do petista. Continua sendo improvável que ele consiga disputar a eleição de outubro porque, fora o constrangimento internacional, não há maiores consequências para o país por desrespeitar a recomendação da ONU.
O ex-presidente solicitou seu registro de candidato nesta quarta-feira e, no mesmo dia, a Procuradoria-Geral da República se manifestou pedindo que ele seja negado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Isso gerou a abertura de um processo, que pode se estender por algumas semanas. O ministro sorteado como relator do caso foi Luís Roberto Barroso, forte defensor da Lei da Ficha Limpa, que proíbe condenados em segunda instância, como Lula, de concorrer.
O petista está preso desde abril em Curitiba, cumprindo antecipadamente a pena de 12 anos e um mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Para disputar a eleição, ele precisa de uma liminar (decisão provisória) das cortes superiores (Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça) reconhecendo que há sinais de ilegalidades no processo do Tríplex do Guarujá e que, portanto, são altas as chances de sua condenação em segunda instância ser revertida mais à frente. Isso parece improvável hoje.
Vista da sede do TSE em BrasíliaDireito de imagemTSE / ASCOM
Image captionPara especialistas, a questão não é se Lula terá seu registro negado pelo TSE (foto), e sim quando isto acontecerá
Sem essa liminar, Lula será considerado inelegível pela Justiça. E o que acontece depois? Tudo depende de quando sair a decisão. Entenda abaixo quais os cenários possíveis.

Cenário 1: Lula é considerado inelegível antes de 17 de setembro

Dia 22 de agosto se encerra o prazo para que sejam apresentadas no TSE outras manifestações contra a candidatura de Lula. Depois disso, será aberto período de sete dias para o petista se defender e indicar testemunhas para serem ouvidas.
Barroso, então, decidirá se há necessidade de colher depoimentos e realizar diligências para produção de provas (etapa que pode levar até nove dias) ou se o processo se limita a um debate jurídico - cenário mais provável no caso de Lula.
Dessa forma, a tendência é que no final de agosto o caso seja levado ao plenário do TSE, corte formada por sete ministros (três do STF, dois do STJ e dois oriundos da advocacia, nomeados pelo presidente do país).
Mesmo que o TSE rejeite o registro de Lula, a legislação permite ainda que seja apresentado, em até três dias, mais um recurso (embargos de declaração) à própria Justiça Eleitoral. Depois desse segundo julgamento, pode caber recurso também ao Supremo.
Lula em ato da pré-campanhaDireito de imagemAFP
Image captionAntes de ser preso, Lula viajou pelo Nordeste e por Minas Gerais como pré-candidato presidencial do PT
Se Lula for considerado inelegível antes do dia 17 de setembro, que é o prazo final para partidos trocarem seus candidatos, a tendência é que o PT indique o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad para assumir o lugar de Lula. Por enquanto, ele foi registrado como candidato a vice-presidente e está atuando também como coordenador e porta-voz de Lula na campanha. Caso esse cenário se confirme, a deputado estadual do PCdoB Manuela d'Ávila completará a chapa.
Mas, se o processo não for concluído até 17 de setembro, o PT vai ter que escolher entre indicar outro concorrente ou arriscar manter o ex-presidente na disputa, mesmo ele podendo ser barrado mais à frente, o que deixaria o partido fora da eleição presidencial.
A legislação garante que, até a conclusão do processo, Lula é candidato e pode fazer campanha, ainda que preso. Sua defesa está tentando autorização judicial para que ele grave peças de propaganda eleitoral, conceda entrevistas e participe de debates, mas, por enquanto, isso têm sido negado e ele tem se manifestado apenas por cartas. A propaganda em rádio e TV começa dia 31 de agosto.

Cenário 2: Lula é considerado inelegível depois de 17 de setembro, mas antes da eleição

Na hipótese do processo contra o ex-presidente não acabar até 17 de setembro e o PT decidir trocar o candidato por Haddad, o processo sobre o registro de Lula será extinto. Mas, se o PT optar por manter Lula candidato e ele for barrado dias depois, antes de 7 de outubro, o que acontecerá é que seu nome constará na urna eletrônica no primeiro turno da eleição, mas todos os votos dados ao ex-presidente serão considerados nulos.
Manuela D'Ávila (esq.) e Fernando Haddad (dir.) em 'debate paralelo' no dia 9 de agosto, em frente a foto de LulaDireito de imagemRICARDO STUCKERT / INSTITUTO LULA
Image captionSem Lula, a 'chapa triplex' deve acabar sendo formada pelo petista Fernando Haddad (dir.) e Manuela D'Ávila (PC do B).
Embora venha circulando nas redes sociais que haveria a chance de a foto de Lula ser mantida nas urnas mesmo que o candidato do PT seja Haddad, isso não é verdade. O dia 17 de setembro é o prazo para a troca justamente para evitar cenários desse tipo. Segundo a área técnica do TSE, depois dessa data não há tempo suficiente para alterar os nomes no sistema das urnas eletrônicas.
Vale lembrar que os candidatos que vão para o segundo turno são o primeiro e o segundo colocado entre os votos válidos, mesmo que os votos brancos e nulos somem mais de 50%.

Cenário 3: Lula é considerado inelegível depois da eleição

Mesmo que Lula chegue até a eleição de outubro sem ter sido considerado inelegível, sua candidatura ainda pode ser cancelada depois disso. Na hipótese de ele ficar entre os dois primeiros colocados no primeiro turno (dia 7), mas ser barrado da disputa antes do segundo (dia 28), seus votos seriam anulados e o terceiro colocado disputaria o turno final no lugar de Lula, explica o advogado Marcelo Peregrino, ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina.
Já se a análise da candidatura de Lula se estender tanto a ponto de ele conseguir disputar o segundo turno e, eventualmente, ganhar a disputa, sua candidatura pode vir a ser cassada pela Justiça Eleitoral mesmo depois de eleito presidente.
Petistas usam máscaras representando Lula na convenção do partido, no começo de agostoDireito de imagemPAULO PINTO / FOTOS PÚBLICAS
Image captionSe Lula for eleito e tiver sua candidatura tiver sua candidatura negada após a eleição, o pleito pode ser anulado
"Nesse caso, o presidente da Câmara assume a Presidência da República e convoca novas eleições diretas em 90 dias", ressalta Peregrino.
Embora seja comum que processos de impugnação acabem apenas após a eleição, a expectativa é que o caso de Lula seja resolvido antes disso, para evitar que persista uma indefinição tão grande sobre a eleição presidencial.
O advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, que integra a defesa de Lula na área eleitoral, reconheceu à BBC News Brasil nesta terça-feira que "antes do 17 de setembro é provável que se defina" o caso de Lula.
As pesquisas de intenção de voto têm indicado que o petista está em primeiro lugar na preferência do eleitorado, com cerca de 30%.