Retrato
de um gigante - Tolstoi.
Fonte: Estadão. 27.07.2013.
Influência de Tolstoi volta a ser
sentida um século após sua morte
Tradutora e
biógrafa de Chekhov, a acadêmica inglesa Rosamund Bartlett nem sequer
pestanejou quando seu agente lhe perguntou há oito anos, ao concluir a
biografia do autor de As Três
Irmãs, qual seria seu objeto de estudo seguinte. “Tolstoi”,
respondeu a acadêmica, especializada em literatura russa e conhecida no meio
musical por seus estudos sobre Shostakovich. Lançada há três anos na
Inglaterra, para marcar o centenário de morte do escritor, Tolstoi - a Biografia chega
agora ao mercado brasileiro pela Editora Globo. É um monumental estudo sobre as
contradições de um autor não menos grandioso, um gigante que, em sua definição,
“queria ser maior que a vida”. E foi.
A influência de
Tolstoi, diz a pesquisadora, por telefone, de Londres, volta a ser sentida um
século após sua morte no resgate de um certo cristianismo primitivo – ao qual a
Igreja Católica se dedica – e nas manifestações antibélicas que pipocam num
mundo bárbaro e militarizado. Pacifista, ele foi a grande influência de Gandhi
e mentor de sua filosofia de não violência, lembra a biógrafa, destacando o
papel do autor de Guerra e Paz
como educador, um homem que abriu mão de sua origem aristocrática para ensinar
seus servos analfabetos quando isso era impensável na Rússia czarista – ainda
que tenha abusado sexualmente deles em sua “senzala” de Iásnaia Poliana,
propriedade rural da família, onde mantinha 300 criados, satisfazendo na cama
seus desejos interclassistas.
O senhor das
terras Tolstoi não era do tipo que levava a luta de classes para dentro de
casa. Para isso, já bastavam as brigas com sua burguesa mulher Sófia Behrs
(depois Tolstaya), retratada com maior simpatia na biografia de Bartlett que no
best-seller A Última Estação (1990), do norte-americano Jay Parini, em que ela
beira a histeria. Rosamund não leu o livro, mas viu o filme. “Há nele uma certa
trivialização que distorce o conflituoso relacionamento que Tolstoi manteve até
o fim da vida com a mulher”, observa a biógrafa, evocando as constantes brigas
do casal por absoluta discordância ideológica. Ela, filha de um médico, pensava
na herança dos filhos (eles tiveram 13, dos quais 8 chegaram à vida adulta).
Ele, já seduzido pelos ideais socialistas e após renunciar ao título de conde,
pensava nos camponeses e discípulos, em nome dos quais abria mão dos direitos
autorais. Parini até aborda a questão, mas romantiza a relação.
O nobre
Tolstoi, filho de conde e princesa, já era vigiado pela polícia secreta do czar
em sua Iásnaia Poliana, quando se casou com Sófia, em 1862, três anos após
abrir a primeira escola para os filhos dos camponeses da região. Continuou
perseguido 20 anos depois, após renunciar à fé ortodoxa e pedir clemência para
os assassinos do czar Alexandre II, que vendeu para os americanos o Alasca
(onde o tio de Tolstoi foi abandonado). Numa Rússia em turbulência pela morte
do czar, acossada pela supressão dos direitos civis e a brutalidade policial,
Tolstoi formou um verdadeiro exército de seguidores de sua filosofia – que
cruza os quatro Evangelhos, o vegetarianismo, o pacifismo, o controle interno
do corpo (ele, que teve uma vida dissoluta antes de sua conversão) e a
desobediência ao poder constituído. Tolstoi foi excomungado pela Igreja Russa,
que o tornou proscrito em 1901 – por “pregar fanaticamente contra o dogma
ortodoxo”. Na verdade, ela tentava minar sua influência.
A biógrafa
concede bastante espaço ao papel de Tolstoi como líder da nação e aos
ancestrais do escritor, associando, quando necessário, sua vida à obra. Ela não
chega a dizer que Tolstoi era Anna Karenina de calças, mas há uma série de
personagens que a biógrafa identifica no autor. “Há muito do Vronski de Anna
Karenina e do Nekhlyudov de Ressurreição em sua personalidade, além de nítidas
referências aos antepassados em seus romances”, diz, lembrando que Tolstoi,
após sua conversão religiosa, em 1877, não apenas renunciou aos prazeres
sensuais, ao fumo e à bebida, como adotou uma atitude confessional em seus
livros, mais exatamente em Ressurreição, sua obra derradeira. Tolstoi usa como
avatar Nekhlyudov, que, ao se tornar militar (e Tolstoi foi um deles na
juventude), é corrompido e corrompe Katiusha, até o mea-culpa final, quando a
segue até a Sibéria e se dá conta do sofrimento dos prisioneiros políticos.
Esse movimento
circular não indicaria um sujeito bipolar? “Não arriscaria um diagnóstico médico,
pois não sou da área, mas, evidentemente, persistia nele um certo
desequilíbrio, notável em gênios ou artistas como Nureyev, para os quais uma
vida parece pouco diante de tudo o que aspiram”, diz Rosamund, que se dedica
justamente a uma nova tradução inglesa de Anna Karenina, uma mulher além de seu
tempo, na qual ela identifica alguns traços da personalidade de Tolstoi. “Há um
forte elemento feminino que faz com que Tolstoi pense nas mulheres de maneira
diferente de seus contemporâneos.” Gorki dizia que Tolstoi amava Chekhov,
admirando o jeito delicado e feminino como o dramaturgo andava no parque.
Bartlett insinua que a falta de confiança da mulher de Tolstoi em seu amigo e
discípulo Chertkov não se restringia a questões políticas ou filosóficas. De fato,
em seu diário, Sófia acusa Chertkov de ter tomado seu lugar no coração do
marido, criticando a paixão senil do escritor e acusando-o ainda de escrever
cartas secretas de amor ao discípulo.
“Chertkov usou
sua influência junto ao escritor para conseguir os direitos sua obra e, ao
partir para o exílio, em 1897, um ano após ser criada a primeira colônia
tolstoísta na Inglaterra, já pensava em fundar uma editora para publicar seus
livros em inglês”. O discípulo voltaria para morrer em Moscou em 1936, quando foi
aprovada a Constituição Soviética, dando poder aos camponeses, sonho de Tolstoi
que virou um pesadelo: a ditadura stalinista.