Fonte: cartacapital.com.br/sociedade/o-algoz-e-o-crematorio/
O
algoz e o crematório
Na madrugada de
2 de abril, uma terça-feira, o ex-delegado capixaba Cláudio Guerra, atualmente
em liberdade condicional, percorreu por quatro horas os cerca de 250
quilômetros entre Vitória, capital do Espírito Santo, e Campos, no norte do Rio
de Janeiro. Foi revisitar a Usina Cambahyba, frequentada por ele nos anos 1970,
período em que manteve ativa colaboração com o sistema de repressão da
ditadura.
É a terceira
visita de Guerra ao lugar desde o lançamento de Memórias de Uma Guerra Suja,
livro que reúne depoimentos a Rogério Medeiros e Marcelo Netto. A primeira em
companhia de um jornalista (à exceção da equipe dos autores do livro). Na obra,
publicada no ano passado, o ex-delegado revelou ter queimado nos fornos da Cambahyba
12 cadáveres de militantes de esquerda torturados até a morte nos porões da
ditadura. “Naquela época, vinha aqui e não sentia nada. Hoje me sinto mal pra
caramba. Estou falando com você por misericórdia de Deus”, justificou-se.
Confissões. Em suas memórias, histórias de crimes diversos
Nos
escombros
da usina, em cujas terras instalou-se um assentamento do MST, Guerra
indicou as portas dos fornos onde os corpos eram jogados. “O primeiro foi o
Cerveira. Não foi nos primeiros fornos não, foi mais no meio”, recorda-se, em
referência ao major Joaquim Pires Cerveira, ex-militante da Frente de
Libertação Nacional, “cremado” no início de 1974. Cerveira e o militante João
Batista Rita foram presos pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury na Argentina e
reenviados ao Brasil. Os dois morreram nas dependências do DOI-Codi do Rio de
Janeiro.
Guerra afirma
ter acompanhado o transporte dos cadáveres até a porta do forno, em companhia
de dois empregados da usina, o capataz Zé Crente, falecido, e o ex-motorista
Erval Gomes da Silva, o Vavá, única testemunha viva da queima dos de corpos. Em
outros momentos, o ex-delegado não se deu ao trabalho de conferir se os corpos
foram para o fogo. Preferia tomar uísque na casa de João Lysandro, o João Bala,
filho de Heli Ribeiro Gomes, dono da usina, enquanto Zé Crente e Vavá faziam o
serviço.
Todos os corpos
foram recolhidos no DOI-Codi carioca, instalado no quartel do 1º Batalhão da
Polícia do Exército, no bairro da Tijuca, e na conhecida Casa da Morte, centro
de tortura comandado por militares do Exército em Petrópolis, na região serrana
fluminense. Segundo Guerra, um 13º corpo também acabaria lançado aos fornos da
usina. O tenente do Exército Odilon Carlos de Souza, agente da repressão
política, foi morto pelo ex-delegado diante de Bala e Vavá. Motivo: queima de
arquivo.
A rotina era a
mesma. Guerra estacionava o carro com os cadáveres na casa de Bala, a menos de
500 metros dos fornos. “Os corpos ficavam parados aqui”, mostrou, diante da
residência, hoje com novo proprietário. “Quando dava 10-11 horas da noite, o Zé
Crente ia lá, deslocava o pessoal de perto da boca do forno para outros
lugares. Nós já tínhamos repassado os corpos para o carro da usina. Íamos e
jogávamos no fogo.”
Ao rever o
local dos crimes, a preocupação do ex-delegado era mostrar a profundidade dos
fornos para derrubar os argumentos de outra herdeira da Cambahyba, Cecília
Lysandro Gomes Ribeiro, vereadora em Campos. Segundo ela, não caberiam
cadáveres nos queimadores. Guerra está certo: cabem.
O
ex-delegado retornou
a primeira vez à usina em junho passado na companhia do delegado federal Kandy
Takahashi, por determinação do então coordenador da Comissão Nacional de
Verdade, o ministro do STJ Gilson Dipp. Antes, havia prestado um detalhado
depoimento à comissão, quando reafirmou suas ligações nos anos 1970 com o
falecido coronel do Exército Freddie Perdigão, do Serviço Nacional de
Informações. Manteve ainda a confissão da execução de militantes de esquerda,
do assassinato do tenente Souza e da ocultação de cadáveres.
Desde o
lançamento de suas memórias, paira uma desconfiança em relação a Guerra.
Policial que se tornou bandido sanguinário no Espírito Santo, o ex-delegado se
converteu na prisão à Assembleia de Deus. Justifica suas confissões recentes à
fé adquirida na cadeia, mas poderia também estar em busca de holofotes no fim
da vida. Ou disposto a confundir a apuração real de crimes da ditadura.
Fato ou ficção?
Para o procurador Eduardo Santos de Oliveira, as histórias de Guerra são no
mínimo verossímeis. Ao lado de quatro colegas do Ministério Público e na
presença dos deputados federais Luiza Erundina (PSB-SP) e Jean Wyllys
(PSOL-RJ), da Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça da Câmara,
Oliveira ouviu o ex-delegado por nove horas. Convenceu-se da necessidade de
novas investigações e defende que seja feita uma perícia nos fornos em busca de
vestígios (restos de ossadas ou dentes). Erundina também se impressionou com a
consistência do depoimento. E estranha a falta de “resultados práticos a partir
do que vem sendo identificado”.
Contraprova.
Guerra queria derrubar a versão da família dona da usina. Os cadáveres cabiam
nos fornos. Foto: Marcelo Auler
O procurador parece remar
contra a maré. Em Campos, é nítida a tentativa de desqualificar as denúncias.
Um exemplo partiu do promotor estadual Marcelo Lessa Bastos. Em agosto do ano
passado, diante de um pedido de investigação do caso feito por Jorge Augusto,
irmão de Cecília, Bastos apressou-se em tentar enterrar o caso. Sem ao menos
ouvir Guerra, segundo o promotor uma “pessoa vinculada à Ditadura Militar (sic),
do antigo Dops, portanto, sem nenhuma credibilidade”, rechaçou qualquer
investigação, pois considerou as denúncias mera tentativa de autopromoção por
meio da exploração do “mito que ainda gravita em torno dos atos praticados por
ocasião da Ditadura Militar (sic) de 64, sendo que, como se sabe, os
crimes da época foram todos anistiados”. Também achou desnecessário ouvir Vavá,
o motorista da família que ajudaria na queima dos corpos.
Bastos
concluiu: “A biografia do dono da usina, o já falecido Heli Ribeiro Gomes,
pessoa respeitada na sociedade local, torna absolutamente inverossímil a
malsinada narrativa, que pode, inclusive, constituir crime de calúnia”.
E o que Vavá, o
motorista, tem a dizer? Em maio do ano passado, o delegado federal Takahashi o
localizou. De pronto, Vavá negou inclusive conhecer o ex-delegado capixaba.
Traiu-se, porém, ao vê-lo via Skype, um sistema que transmite som e imagem pela
internet. “Oi Dr. Guerra”, deixou escapulir. “Aí caiu a casa”, diz o
ex-delegado.
Takahashi quis
levá-lo a Vitória para uma acareação ao vivo. Quem o impediu de ir foi o
advogado Carlos Alberto Tavares Senra, acionado após a mulher de Vavá procurar
a vereadora Cecília.
O afastamento
de Dipp da Comissão da Verdade por motivos de saúde e a promoção de Takahashi
para o comando da PF no Rio Grande do Norte levou a denúncia a cair no
esquecimento. Sem terminar as investigações, o delegado federal não conseguiu
confirmar ou afastar de vez a versão da cremação dos 12 corpos.
O policial
federal não duvida, porém, dos eventuais serviços prestados por Guerra à
repressão. Colaboração igualmente admitida pelo coronel do Exército Paulo Malhães,
que dava expediente na Casa da Morte. Em junho último, em entrevista a O
Globo, Malhães admitiu que Guerra atuou sob o comando de Perdigão, mas
ressalvou: “É um mentiroso.
A
participação
do ex-delegado no assassinato de Ronaldo Mouth Queiroz, militante da
ALN, morto em abril de 1973 na Avenida Angélica, em Higienópolis, São Paulo,
foi confirmada pelo advogado Belisário dos Santos Jr., amigo de Queiroz.
Segundo Santos apurou, o capixaba narra detalhes conhecidos apenas por quem
realmente participou da operação.
Lista dos
militantes queimados por Guerra
Sobre as
dúvidas a respeito de suas denúncias, Guerra pede uma chance para prová-las e
insiste: está pronto para participar de uma acareação não só com Vavá, mas
também com Malhães e com o mais notório repressor ainda vivo, o coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra. O ex-delegado alega ter se reunido algumas vezes com
Ustra. Este nega.
CartaCapital localizou Vavá em
Campos. O motorista voltou a negar qualquer participação nos crimes. E
desmentiu os relatos do uso da usina para queimar corpos de militantes de
esquerda. Seria impossível realizar a operação ou mantê-la sob sigilo, afirma,
pois os fornos eram vigiados 24 horas por 12 empregados em cada turno.
Vavá igualmente
nega ter conhecido o tenente Souza ou ter presenciado seu assassinato. Apesar
das negativas, no diálogo com Guerra pelo Skype, comentou-se sobre a queima de
um sofá manchado com o sangue do tenente morto. O motorista pareceu saber do
que se tratava.
Por causa
desses detalhes, o Ministério Público desconfia da versão de Vavá. “É prematuro
afirmar que Guerra imaginou tudo isso. Seu depoimento é verossímil,
consistente, coerente. Já o depoimento do Vavá é repleto de inconsistência.
Posso afirmar, com minha experiência, que existem coisas que ainda podem ser
ditas pelo Vavá”, diz Oliveira.
O procurador
guarda um trunfo, o depoimento de um ex-empregado da usina que espontaneamente
foi à Procuradoria e relacionou Vavá ao uso de armas e à prática de violência,
além de noticiar mortes nas quais recaem suspeitas de envolvimento de
integrantes da família Ribeiro Gomes. Oliveira continua disposto a promover uma
acareação. “Se o depoimento de Vavá se sustentar, as revelações de Guerra no
livro se enfraquecem. Até para decidir se continuamos a investigação, precisamos
confirmar ou não nossas suspeitas de que o depoimento do Vavá é inconsistente
com os fatos da época.”