O REGIME DE 1964 E O ESTADO DE DIREITO NO BRASIL
José Brendan Macdonald
Abril de 2014
Nestes dias o país está lembrado da inserção do que chamaremos o Regime
de 1964, isso evidentemente em razão do cinqüentenário do mesmo. Pois na madrugada de 1º de abril de 1964,
elementos subversivos das forças armadas depõem João Goulart, o então
presidente da República que chegara a seu cargo por ter sido vice-presidente já
que algum tempo antes assumira esse cargo em substituição a Janio Quadros que
acabara de renunciar em um momento de tensão política no país em razão de
disputas entre conservadores e progressistas.
A Constituição de 1946 então em vigor deixava claro que o procedimento
certo em tais casos seria a instalação do vice-presidente como presidente.
Não entraremos nos não poucos pormenores da história dos idos de março de
1964 que culminaram no golpe de Estado que hoje é geralmente condenado como uma
afronta à democracia, mesmo democracia no sentido burguês da expressão. Nosso propósito é fazer uma revisão não
aprofundada do golpe e da ditadura que ele instalou e o que isso significa para
a evolução, ou melhor, a involução da democracia.
A alternância entre democracia e ditadura caracterizaram nossa história
política durante não pouco tempo depois da queda da República Velha em
1930. O próprio presidente
constitucional Getúlio Vargas deu o auto-golpe em 1937 até ser obrigado pelas
forças armadas, que já não o apoiavam, a renunciar. Assim houve o Estado Novo (1937-1945), o
período ditatorial de Vargas. De 1945 a
1964 houve um período de democracia formal, durante parte do qual o próprio
Vargas foi presidente pelo voto popular.
Em 1964 se instala uma ditadura: o Presidente João Goulart é deposto e a
próxima eleição para presidente ocorrerá somente em 1990. De 1964 a 1985 o país teve cinco presidentes
fardados. Num período de transição para
a democracia formal (1985-1990) houve um presidente civil, de plena confiança
dos civis e militares conservadores, que não queriam ser perturbados por uma
democratização profunda que desse vez clara às necessidades populares e assim
pudesse limitar privilégios das elites.
Semelhante alternância infelizmente ocorria nos nossos vizinhos
platenses, ou seja, na Argentina e no Uruguai, mais ou menos na mesma
época. Além dos Andes o Chile, orgulhoso
de suas tradições democráticas, pela primeira vez caiu nas garras de um general
sanguinário, Augusto Pinochet, finalmente em 1973, produto de um golpe
cívico-militar de uma violência ímpar.
Note-se que preferimos falar em golpe de Estado cívico-militar ao invés
de apenas golpe militar, que é geralmente o que se diz. Em 1964 vários membros da nossa elite, não
raro políticos profissionais eles mesmos e com fortes interesses traduzidos
pelos grandes negócios, batem nas portas dos quartéis e convidam alguns
oficiais a lançar a aventura de um golpe de Estado para instalar o que
curiosamente chamam de Revolução para combater as mazelas do “comunismo ateu.” Certamente havia oficiais militares que não
aprovavam esse golpe à democracia. Mas
foram condenados ao silencio e em alguns casos a algo pior também. Quanto à população em geral, isto é, a
população civil, o número de pessoas favoráveis à deposição do Presidente
Jango, como era conhecido João Goulart, era grande na classe média, tanto que
em março de 1964 foi organizada a Marcha por Deus e a Família com milhares de
participantes. Mas lembremo-nos que os
pobres eram de longe a maioria da população.
Para eles a ditadura instalada agrediam os seus interesses. Mas o golpe de Estado se concretizou. Agora qualquer oposição era tarde.
Por que se recorreu à medida extrema do golpe de Estado?
Havia acima de tudo o temor das elites às chamadas reformas de base
promulgadas pelo governo João Goulart em março de 1964. Não pretendemos detalhá-las. Alguns comentários, queremos acreditar, serão
suficientes.
O presidente insistia numa:
- reforma agrária: a extensão do Direito trabalhista aos trabalhadores
rurais e não mais só para os trabalhadores urbanos; terras situadas às margens
de rodovias e ferrovias federais que não cumprissem a função social da
propriedade seriam nacionalizadas e assim pagas com títulos da dívida pública,
o que exigiria uma reforma constitucional já que a Constituição exigia
pagamento prévio e em dinheiro;
- reforma urbana: visando a utilização do solo urbano, a ordenação e
equipamento das aglomerações urbanas e “fornecimento de habitação condigna a
todas as famílias”;
- reforma educacional: visando principalmente erradicar o analfabetismo
que ainda tinha um nível elevadíssimo;
- reforma fiscal: visando entre outras coisas o controle e limitação da
remessa de lucros para o exterior;
- reforma eleitoral: visando a extensão do direito de voto aos
analfabetos e militares de baixa patente; pensava-se na legalização do Partido
Comunista Brasileiro também;
- reforma bancaria: visando ampliar o acesso ao crédito pelos produtores.
É claro que a maioria dessas propostas não podia agradar à elite nacional
nem aos seus parceiros estrangeiros. E
envolveriam custos e daí impostos. O
presidente estaria fazendo o jogo dos comunistas muito embora ele próprio não
fosse comunista. Hoje as elites falam
muito mal de supostos terroristas. Naquele tempo o nome feio era comunistas se bem que este último termo
também pode ser anátema ainda hoje.
Haveria colaboração estrangeira, notoriamente norte-americana, no golpe
de Estado de 1964? Há muito tempo se
sabe que os Estados Unidos tinham uma frota de prontidão no Caribe, o que seria
uma arma auxiliar importante desde que tido como necessário e houvesse a
invenção de um incidente anti-americano no país. Tal recurso não foi de fato necessário mas a
precaução pairava no ar. Lincoln Gordon,
o embaixador dos Estados Unidos no país, estava por dentro de boa parte da
trama de um golpe de Estado e deixava o governo de seu país a par.
Toda a preocupação imperial dos Estados Unidos com a America Latina fazia
e faz parte de um quadro geral. Mais do
que a África e a Ásia, a América Latina enquanto colônia em potencial é o que
chama a atenção daquele país. O Reino
Unido, França, Bélgica e outros países que se especializem na exploração do
chamado Velho Mundo, deixando a America Latina em segundo lugar. E tal exploração inevitavelmente exige a
intromissão dos fortes em muitos assuntos que de direito não lhes
competiriam.
Havia acontecimentos no Brasil que muito preocupavam a elite brasileira e
seus aliados imperiais.
Após a Segunda Guerra Mundial, e notoriamente a partir de 1954, foram fundados
grupos que passariam a ser chamados Ligas Camponeses em Pernambuco para em
seguida se multiplicar em vários estados do Nordeste. As Ligas visavam principalmente facilitar o
pagamento de despesas funerárias para os camponeses, prestar-lhes assistência
médica, jurídica e educacional, formar cooperativas. Como se vê, nada disso em tese feriria os
interesses da classe dominante. Mas como
as Ligas traçavam sua origem ao trabalho do Partido Comunista Brasileiro em
1946, eram inadmissíveis para as classes dominantes sempre marcadas por um
notório anti-comunismo. As Ligas foram
eliminadas então pouco depois do golpe de Estado de 1964.
Também havia políticos profissionais cujas atitudes irritavam e em alguma
medida atemorizavam as elites. Leonel
Brizola, cunhado do Presidente João Goulart, era deputado federal e pressionava
o Presidente a promover as reformas de base.
No histórico comício de 13 de março de 1964 ocorrido na praça do Central
do Brasil no Rio de Janeiro, em discurso inflamado condenou o conservadorismo
do Congresso Nacional e exigiu a convocação de uma assembléia
constituinte. Outro político que
irritava as poderosas forças conservadoras era Miguel Arraes, governador de
Pernambuco. Conseguiu obrigar as
oligarquias rurais de seu estado a pagarem o salário mínimo a seus
trabalhadores e promoveu sindicatos rurais, associações comunitárias e ligas
camponesas. Mais do que qualquer pecado
mortal, as posturas de políticos como Brizola e Arraes foram tidos como
sacrilégio.
Aos sacrílegos só restam as chamas do inferno. Assim, cidadãos como Leonel Brizola, Miguel
Arraes e inúmeros outros não mencionados aqui só poderiam ganhar a prisão e o
exílio.
Assim o regime instalado no país em abril de 1964 moldou boa parte do
posterior destino do país. Ele não
respeitou um estado de direito e criou seus próprios “atos
institucionais”. Mas com o tempo o
próprio regime percebeu que sua popularidade estava em jogo. Em 1979 – 15 longos anos após o golpe de
Estado – foi declarada uma anistia a favor
de presos políticos. E, repetimos, foi
somente em 1990 que foi eleito um presidente da República pelo voto
popular. A ditadura, portanto, gozou de
um longuíssimo período para traçar o destino do país a seu gosto.
Se o golpe de estado e a subseqüente instalação da ditadura são
expedientes freqüentes em boa parte dos países do chamado Terceiro Mundo1, que dizer do que ocorre nos
países mais industrializados nas últimas décadas? Ao que parece, até o presente momento as
elites desses países não acharam necessário recorrer àquilo que seria
facilmente reconhecido como ditadura. Há,
porém, uma tendência perigosa para os direitos democráticos nos Estados
Unidos. Uma recente legislação que fere
a própria Constituição mas que (não surpreendentemente) não é criticada pela
grande mídia é aplicada lá às vezes.
Trata-se da Lei Patriota de 2001 que limita sobremaneira ao réu o
direito de defesa quando se trata de assuntos de segurança nacional.2 Este pesquisador não sabe se algo semelhante
já existe em outros países industrializados.
Isso deve depender provavelmente do grau de êxito de militantes lá –
quando os há - a favor de boa parte dos
direitos humanos. Trata-se de um assunto
secundário para o presente artigo nosso.
Fizemos referência a ela para evidenciar o fato de que um apreço ao
valor intrínseco do estado de direito é necessário para garantir que a justiça
seja feita – no Brasil e fora. Não é à
toa que nossa classe dominante moldou uma legislação a seu gosto mesmo quando a
impôs sem respeitar as exigências clássicas da democracia – não importa quão
imperfeita esta – que o mundo conhece até hoje.
Será preciso um novo momento histórico antes que se instale um Direito
conseqüente para a pessoa comum, para o grosso dos cidadãos. É percebendo a natureza insatisfatória do nosso
Direito que perceberemos também a necessidade de pensar uma nova civilização
mais adequada a práticas jurídicas mais claramente consoantes com as
necessidades da maioria.
NOTAS
- Embora a usemos, reconhecemos o estado obsoleto desta expressão, usamo-la por falta de outro em uso hoje. Ela era válida sim quando havia o bloco capitalista e o bloco não capitalista (este último composto principalmente pela União Soviética e China mas não só por elas).
- Ver,
por exemplo, Sheldon Wolin, Democracy
incorporated: Managed democracy and the specter of inverted
totalitarianism, Princeton, EUA, Princeton University Press, 2008.