sexta-feira, 10 de novembro de 2017

4 ideias de Karl Marx que seguem vivas apesar do fracasso da URSS e do comunismo


Estátua de Karl Marx em Moscou Foto Fred Adler/BBCDireito de imagemFOTO FRED ADLER/BBC
Image captionEstátua de Marx em Moscou; pensador alemão teve papel de peso em história do país

Karl Marx, o ideólogo da Revolução Russa, cujo centenário é marcado nesta terça-feira, dia 7 de novembro, é relevante hoje em dia?
Ainda que o filósofo alemão tenha vivido e trabalhado no século 19, uma época bem diferente da nossa, é indiscutível que dois de seus textos, O Manifesto Comunista (1848), redigido junto com o também filósofo alemão Friedrich Engels, e O Capital (1867), tiveram em um momento determinado da história uma grande influência política e econômica em muitos países e sobre milhões de pessoas.
O surgimento da União Soviética (URSS) após a Revolução Russa foi um exemplo disso. Ninguém nega que o bloco socialista marcou boa parte do século 20, no entanto, também é um fato que ele desmoronou e que o comunismo não se materializou tal qual propuseram Marx e Engels, com o capitalismo vigorando em quase todo o planeta atualmente.
Mas podemos dizer que todas as ideias de Marx estão obsoletas? Ou é possível elencar algumas que se tornaram realidade e seguem vigentes até hoje? A seguir, selecionamos quatro exemplos.

1. O ativismo político

Marx descreve a luta de classes na sociedade capitalista e como o proletariado acabaria tomando o poder das elites dominantes em todo o mundo. O Capital, sua principal obra, é uma tentativa de indicar essas ideias por meio de fatos que podem ser verificados e de análises científicas.
Foi uma mensagem poderosa em um mundo pleno de opressão e desigualdade. "A experiência pessoal de Marx, que viveu na pobreza, conferiu uma grande intensidade à sua análise, que recorreu à Filosofia contra o monstro capitalista que escravizava os seres humanos", explica à BBC um dos seus mais renomados biógrafos, o britânico Francis Wheen.

Protesto da FrançaDireito de imagemGETTY
Image captionMarx questionou a ideia de que o capitalismo se autorregulava

Durante o século 20, as ideias de Marx inspirariam revoluções na Rússia, China e Cuba e em muitos outros países onde um grupo dominante foi derrubado e os trabalhadores se apoderaram da propriedade privada e dos meios de produção.
O marxismo foi além e tornou-se uma maneira de interpretar o mundo: a simples ideia de que a história é marcada pela luta entre classes antagônicas também influenciou a literatura, a arte e a educação.
"Hoje em dia, Marx segue relevante como filósofo político. Geração após geração, muitos buscam inspiração nele para suas próprias lutas", diz Albrecht Ritschl, historiador alemão especializado em marxismo e chefe do Departamento de História Econômica da London School of Economics, no Reino Unido.
"Continua-se a falar sobre os temas tratados por Marx. Por exemplo, a globalização. Marx foi um dos primeiros críticos da internacionalização dos mercados. Também se referiu à desigualdade ao alertar que ela estava aumentando no mundo. Poderia se dizer que Marx continua sento atraente e faz parte do discurso político atual."
Ainda que a queda da URSS, em dezembro de 1991, tenha sido um forte golpe contra a teoria marxista (por algum tempo, partidos de esquerda e universidades deram a ela menos importância), a crise financeira global de 2007/2008 voltou a torná-la relevante.
Esse colapso foi um exemplo clássico das recorrentes crises do capitalismo que haviam sido previstas pelo pensador alemão. Desde então, as vendas de O Manifesto Comunista O Capital crescem em todo o mundo.

2. A recorrência de crises econômicas

Marx questionou a ideia de que o capitalismo se autorregulava. Para ele, não havia uma "mão invisível" que trazia ordem às forças do mercado, como havia postulado o economista e filósofo escocês Adam Smith, considerado o "pai" do capitalismo, em A Riqueza das Nações (1776).
Marx argumentava que o sistema capitalista estava condenado a períodos de crises recorrentes inerentes a eles - hoje, os economistas falam em recessões. "Ainda que ele não tenha sido o único a falar disso, sua ideia original era que cada turbulência levaria a outra pior e assim sucessivamente até a destruição do capitalismo", explica Ritschl.

Marx em 1860Direito de imagemGETTY
Image captionNo século 20, as ideias de Marx inspiraram revoluções na Rússia, China e Cuba e em outros países

A grande depressão econômica de 1929 e as outras subsequentes alcançaram seu auge em 2007/2008, quando o mundo viveu um colapso financeiro inédito em termos de gravidade, impacto e persistência. "É certo que os aspectos mal resolvidos do capitalismo levam a novas crises, mas a ideia determinista de Marx, de que o sistema desmoronaria por causa de defeitos intrínsecos, foi desacreditada", diz Ritschl.
"Mas hoje estamos mais alertas do que nunca diante das turbulências e somos mais cuidados com elas, em parte graças a ele." Ainda que, ao contrário do que previu Marx, as crises não tenham ocorrido nas indústrias pesadas, mas no setor financeiro, esclarece o especialista.

3. Ganhos desmedidos e monopólios

Um aspecto importante da teoria de Marx é a chamada mais-valia: o valor criado pelo trabalhador com sua força laboral. O problema, segundo o pensador alemão, é que os donos dos meios de produção se apropriam da mais-valia e tentam maximizar seus ganhos às custas do proletariado.
Assim, o capital tende a concentrar-se e centralizar-se em poucas mãos e, em contrapartida, isso leva ao desemprego e a uma depreciação dos salários dos trabalhadores. É possível ver isso hoje em dia.

Jovem lee 'O Capital' em frente ao busto de MarxDireito de imagemGETTY
Image captionMarx dizia que o sistema capitalista estava condenado a enfrentar crises recorrentes até de autodestruir

Por exemplo, uma recente análise da revista britânica The Economist mostra que, enquanto nas últimas décadas o salário dos trabalhadores em países como Estados Unidos se estabilizou, o salário máximo de executivos aumentou significativamente: em vez de ganhar o equivalente a 40 vezes o salário médio dos trabalhadores, passaram a ganhar 110 vezes ou mais.
"A crítica de Marx à acumulação é válida ainda hoje, porque continua a ser um dos pontos fracos do capitalismo", diz Ritschl. "Atualmente, vemos claramente a acumulação desmedida de poder por parte das grandes empresas internacionais e também a formação de monopólios e duopólios. Marx nos alertou sobre esses riscos."

4. A globalização e a desigualdade

Biógrafos de Marx, como Francis Wheen e outros estudiosos de sua obra, dizem que ele se equivocou com sua ideia determinista de que o capitalismo sepultaria a si mesmo ao criar seus próprios coveiros. Mas ocorreu o contrário: com a queda da URSS, o capitalismo não apenas saiu fortalecido como se expandiu pelo mundo.
Ninguém expressa melhor essa ironia do que o pensador marxista Jacques Rancière, professor de Filosofia da Universidade de Paris VIII: "O proletariado, longe de sepultar o capitalismo, o mantém vivo. Trabalhadores explorados e mal pagos, libertados pela maior revolução socialista da história (China), são levados à beira do suicídio para que o Ocidente possa seguir jogando com seus iPads, enquanto isso, o dinheiro chinês financia os Estados Unidos, que, de outra forma, estaria falido."
Mas, se Marx falhou em sua previsão, não errou nas fortes críticas à internacionalização do capitalismo. Em O Manifesto Comunista, ele argumenta que a expansão global do capitalismo se tornaria a principal fonte de instabilidade do sistema internacional, como demonstrariam uma série de crises financeiras nos séculos 19 e 20.

Estatuetas de Marx na AlemanhaDireito de imagemGETTY
Image captionKarl Marx viveu na pobreza pela maior parte de sua vida

"A necessidade de constantemente expandir mercados para seus produtos persegue a burguesia", sustentam Marx e Engels. "Deve se estabelecer e criar conexões por toda parte. Isso obriga a todas as nações, sob pena de extinção, a adotar o modo burguês de produção."
Por isso, o marxismo tem sido resgatado no debate atual sobre os problemas da globalização. "Hoje, há no mundo muita gente preocupada com a destruição dos mercados locais, na insegurança laboral e da perda de empregos", comenta Ritschl.
"A globalização foi, por exemplo, um dos grandes temas da última eleição americana, na qual dominou uma pergunta que poderia ter sido feita em muitas partes do planeta: o que fazemos com aqueles que prejudicados por ela?"
Está claro que, apesar das previsões equivocadas e ideias obsoletas, Marx colocou em pauta no século 19 vários temas de debate sobre política e economia que seguem vigentes mais de um século depois.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Tim Vickery: Um brasileiro enxergou o autoritarismo que transformou o sonho da revolução russa em horror


Tim VickeryDireito de imagemEDUARDO MARTINO

Será que a grande tragédia do século 20 ocorreu exatos cem anos atrás?
A Revolução Russa é diferente. Pode-se pensar o que quiser sobre os ideais revolucionários, mas não há dúvida de que, na cabeça deles, pelo menos no início do processo, eles realmente acreditavam que estavam servindo a grande causa da libertação humana.
A tragédia fica no abismo entre o sonho e a triste, sangrenta, totalitária realidade em que se transformou a União Soviética nas décadas seguintes.
Um dos primeiros a cair no abismo foi um brasileiro: Antonio Bernardo Canellas foi delegado no 4º Congresso da Internacional Comunista, em 1922, tornando-se o primeiro brasileiro a visitar a Rússia após a revolução. De Niterói, mas ativo politicamente no Nordeste, Canellas, com 24 anos, era o mais jovem entre os quase 400 delegados.

Ele não parece ter sido uma figura fácil. Falava quando precisava ouvir. Tinha um ego enorme. Brigava com facilidade. E esquecia que, na verdade, não representava quase ninguém. Estava lá como homem do Partido Comunista do Brasil (PCB), organização na época em formação que pleiteava o direito de ser reconhecida pela Internacional. Mas já estava fora do país havia mais de dois anos, desatualizado quanto aos desdobramentos em curso no Brasil.

Manifestação durante a Revolução Russa, em outubro de 1917Direito de imagemGETTY IMAGES
Image captionManifestação durante a Revolução Russa, em outubro de 1917: sonho de libertação humana acabou virando realidade sangrenta e totalitária, diz colunista

Mas Canellas ganhou o direito de votar no Congresso. E, num ambiente em que as decisões eram sempre aprovadas por unanimidade, ele ousou quebrar o protocolo e votar contra.
E justamente em um voto crucial: sobre o direito da Internacional (ou seja, dos russos) de intervir (na prática, mandar) nos partidos comunistas no mundo todo. Até Lênin, debilitado e quase na fim da vida, via o equívoco de uma organização "inteiramente russa, permeada do espírito russo", quando "a experiência dos camaradas estrangeiros deve diferir da experiência russa".
A história mostra que Canellas tinha razão em votar contra. Mas o seu espírito de independência não seria perdoado.
Em consequência de seu voto, o PCB não foi aprovado pela Internacional, e, na volta para o Brasil, Canellas virou alvo de protestos dos outros membros. Seus colegas rapidamente viraram seus inimigos.
Ele acabou rompendo com o partido, que publicou um manifesto a seu respeito, chamando-o de "traidor, indigno e vil... É necessário dissecar este cadáver. É preciso desnudá-lo, rasgar-lhe o couro mau, desfibrar-lhe as carnes ruins, pôr-lhe as vísceras ao sol, espremer-lhe o figado esgorgitado de torpeza".
Isso em junho de 1924, menos de sete anos depois da revolução. O sonho da emancipação da humanidade já começava a virar um terror, que na União Soviética de Stálin transformou-se em pesadelo prolongado.
Como foi que tudo ruiu tão rapidamente em uma farsa mortal?

Capa de livro sobre Antonio CanellasDireito de imagemREPRODUÇÃO
Image captionCapa de livro sobre Antonio Canellas, o primeiro brasileiro a visitar a Rússia após a revolução

Me parece que passou batida uma observação da pensadora alemã Hannah Arendt: "Os revolucionários não fazem a revolução. Mas eles sabem onde pegar o poder quando está lá no chão".
Isso se aplica muito bem aos eventos de cem anos atrás. Porque, depois da revolução, os comunistas russos andavam que nem pavões, as grandes estrelas do movimento.
Tem uma ironia deliciosa aqui: em abril de 1917, quando Lênin voltou para o país com um projeto de liderar uma revolução comunista, muito deles eram contra. E mesmo depois de convencidos, não foram eles que fizeram a revolução. Uma sociedade arcaica despencou sobre as necessidades de lutar uma guerra moderna.
Tem quem argumente que o que aconteceu cem anos atrás foi mais para um golpe de soldados do que uma revolução no sentido pleno da palavra.
A ideia original de Lênin e Tróstki foi se aproveitar justamente dessa fraqueza para iniciar uma revolução que logo se espalhasse aos países mais avançados. Não rolou. Ter um Estado comunista somente na Rússia era impensável. Mas acabou acontecendo. E a Internacional Comunista virou um veículo para impor um modelo russo em cima de todos os partidos do mundo.
E esse modelo russo foi altamente autoritário - por necessidade. O novo regime estava lutando uma guerra civil a partir de uma posição muito fraca. Se as dificuldades externas eram grandes, as internas eram mais ainda, algo não previsto pelos articuladores originais de comunismo.

Stálin e Lenin durante a Revolução Russa, em 1917Direito de imagemGETTY IMAGES
Image captionStálin e Lênin durante a Revolução Russa, em 1917; 'Como foi que tudo ruiu tão rapidamente em uma farsa mortal?', questiona Vickery

No fim da vida, Friedrich Engels via com otimismo o progresso possível pelo processo democrático. Décadas antes, em 1848, Karl Marx havia escrito sobre a necessidade na revolução de um curto período de ditadura do proletariado. Mas isso numa sociedade onde a classe operária urbana era grande maioria. Na Rússia atrasada, entretanto, eles fizeram parte de uma minoria pequena de uma sociedade de camponeses.
A ditadura do proletariado russo, então, implicou enganar os camponeses - milhares de pessoas - com promessas de terra até o regime novo fosse forte suficiente para os destruir como força independente, os obrigando a virar funcionários de fazendas coletivas. Com custos altíssimos de vida.
O modelo de partido russo - centralizado e autoritário - mostrou-se totalmente inadequado para outras sociedades. Durante décadas, a Internacional Comunista só acumulou fracassos e até facilitou a ascensão nazista na Alemanha.
Antonio Bernardo Canellas não previu tudo isso. Mas, mesmo com a impetuosidade da juventude e seus excessos de ego, enxergou e entendeu os perigos da ausência de debate. No centenário da revolução, merece ser lembrado.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.

Leia colunas anteriores de Tim Vickery: