Memórias
das lutas políticas clandestinas (II)
Além
de Faustino e José Bezerra Marinho que, em 86, se candidatou a deputado federal
com apoio da construtora Oderbrecht, você se lembra de outros nomes de pessoas
que renegaram suas idéias do passado?
Juliano
– na verdade, é o seguinte:Uma série de pessoas importantes no movimento
estudantil, no golpe de 1964 e no golpe de 1968, deixaram a cena política com
dignidade, tiveram que sair do Rio Grande do Norte e alguns se exilaram em
outros países, como foi o caso de Maria Laly Carneiro, estudante de medicina,
outros se mandaram para o Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo, etc, como
Ginani, Geniberto Campos. Essas pessoas safran com dignidade. Quer dizer, hoje
continuam sendo cidadãos democráticos, patriotas. Não conheço a sua militância
partidária, mas nunca tive uma informação de que tenham abdicado de suas idéias
e seus princípios. Danilo Bessa e Moacir de Góis foram para o Rio de Janeiro e
voltaram ao RN. São exemplos de pessoas dignas. A alguns professores da
Universidade com formação muita acadêmica tinham posições avançadas e
continuaram, como é o caso de José Arruda Fialho, Ivis Bezerra. Essas pessoas,
mesmo afastadas do movimento revolucionário depois de 64, se mantiveram com
dignidade nas suas profissões, etc.
Quanto
ao suplente de deputado José Bezerra Marinho, eu conheci bastante quando ele
saiu do Colégio Marista e ingressou no Atheneu. No movimento secundarista ele
não teve nenhuma grande participação. Ele foi eleito presidente do Grêmio
Lítero-cultural Celestino Pimentel, em eleição direta, quando derrotou o atual
jornalista Marco Aurélio de Sá. Quem decidiu a parada foi o turno da tarde.
Marinho foi eleito defendendo uma proposta que não tinha nada de política: era
uma proposta cômica de centro, nem de direita, nem de esquerda. O movimento
secundarista passou em branco, quer dizer contra a história do movimento
estudantil do Rio Grande do Norte. Ingressou no Primeiro Ano da Faculdade de
Direito numa turma de mais de 70 alunos,
com 70 pessoas que votavam convictamente nas assembléias com as posições de
esquerda e ele votava nessas posições também. Chegou a ser eleito vice-delegado
da faculdade ao 30 Congresso Nacional da UNE, em Ibiúna-SP. O delegado titular
era eu. Por tarefa do PCB, eu não pude ir ao congresso e ele foi no meu lugar.
Foi preso e na prisão fez uma confissão de arrependimento, uma confissão de fé
anti-comunista e recebeu um tratamento diferenciado em relação aos demais
presos, como Jaime Ariston, Ivaldo Caetano, José Rocha Filho, o nosso saudoso
“Kerginaldo”, Emanuel Bezerra dos Santos, Gileno Guanabara, etc.(Kerginaldo
morreu vitimado por câncer. Foi uma grande liderança no movimento estudantil e
ex-presidente da Casa do Estudante do RN). Mas José Bezerra Marinho retomou a
posição de cômico de centro na prisão. O pessoal ficou nas celas e ele no
cassino dos oficiais. Quando saiu de lá, ele desapareceu da política. Eu passei
seis anos fora do Rio Grande do Norte, três a quatro anos na clandestinidade.
Voltei a estudar, em 1974, e voltei atuar na política timidamente, porque era
cassado, no MDB e me organizei no movimento pró-anistia. E nesse movimento
nunca vi a presença de Marinho, porque ele não participou de nada. Pra mim foi
uma surpresa, em 1986, quando cheguei no RN, para passar as férias, e ter
descoberto que ele tenha levantado na sua campanha para a Assembléia Nacional
Constituinte o passado de luta no movimento estudantil. O que aconteceu foi só
o acidente de Ibiúna, onde participou no meu lugar, depois de um ano de
passeatas, e assembléias estudantis, na Faculdade de Direito. Mas em todo o
processo de resistência democrática e toda a sua militância no movimento
secundarista foi de política de direita. Foi um dos próceres da Juventude
Estudantil Católica-JEC. Era um homem de direita, anti-comunista, com visão de
democracia com as que tinham os que deram o golpe militar de 64, a que ele
apoiou entusiásticamente. Ele nunca teve uma tradição no movimento estudantil
progressista.
Essa confissão de arrependimento está em
algum documento oficial?
Juliano
– Eu tive oportunidade de ler essa confissão de arrependimento porque fui preso
por volta de 1970 (Cópia da confissão? Claro que não tenho, não tive acesso a
esse direito) e tive que assinar um documento que me condenava a um ano de
prisão por atividades no movimento estudantil no Rio Grande do Norte. Era um
documento volumoso, com mais de mil páginas. (A coisa que mais desejava era
papel pra ler; lia até anúncios classificados). Então, resolvi dar uma lida no
processo todo, como leu Gileno Guanabara, Emanoel Bezerra, Jaime Ariston, José
Rocha Filho, Nurembergue Rocha Brito, Ivaldo Caetano. Nesse processo também
estavam presente pessoas dignas, que foram absolvidas, como foi o caso de
JoãoGualberto de Aguiar, que era vice-presidente do Diretório Acadêmico de
Sociologia, da Faculdade da Fundação José Augusto, que não tenho nada contra
ele, absolutamente. Estava Sezildo Câmara, que foi condenado. E lá, eu li os
depoimentos dos presos e das testemunhas. Foi um preso que prestou depoimento,
como ocorreu no meu caso particular, valeu como testemunha de acusação. Com
relação a ele mesmo, disse que se arrependia de tudo aquilo, de ter sido
iludido, de acordo com as suas palavras, “pelo canto da sereia dos comunistas”.
Alguns elementos da direita do movimento estudantil, na Faculdade de Direito,
como Francisco Barbosa, funcionaram como testemunhas de acusação. Inclusive
cometeram erros grosseiros: Francisco Barbosa, por exemplo, disse que eu era
comunista de linha chinesa, coisa que eu nunca fui. Mas o que interessava para
a Auditoria Militar era qualquer tipo de depoimento que me condenasse. Houve
pessoas dignas que foram capazes de testemunhar favoravelmente aos presos,
inclusive o diretor da Faculdade de Direito, Professor Otto Guerra. Ele testemunhou
a favor dos alunos presos da faculdade, no caso eu, Gileno Guanabara. Mesmo que
o Professor Otto de Brito Guerra, anos depois, tenha recusado a participar do
Comitê Pró-anistia, achando que o movimento era uma aventura e não ia ter
resultado, foi e é uma pessoa digna. O tempo provou que ele estava equivocado.
Mas nos processos ele teve um comportamento completamente digno, até porque
tinha sido diretamente atingido pelo golpe militar na figura de seu filho,
Marcos, que teve que se exilar do país.
Depois
de 1964, a Ação Popular-AP teve influência no movimento estudantil em Natal?
Foi a AP quem iniciou o Movimento contra a Ditadura-MCD?
Juliano
– Não. Em 1966, nós já tínhamos reestruturado o PCB, com uma direção, um núcleo
relativamente forte no movimento estudantil e tínhamos inclusive conquistado o Diretório
Central dos Estudantes-DCE da Universidade, obviamente que na clandestinidade.
A AP não tinha nenhuma posição importante no movimento estudantil; tinha
quadros, Jarbas Martins, Arlindo Freire, pessoas respeitáveis, mas não tinham
poder de acumulação que tinham os comunistas. Nós éramos a grande força no
movimento universitário e, no movimento secundarista, a partir de um trabalho
realizado por mim, Luciano de Almeida e com o ingresso de novos quadros, como
Maurício Anísio, Silvério Gomes da Mota e com a aproximação e aliança com
pessoas como Sezildo, etc, nós conseguimos fazer que o grande movimento de
massas entre os secundaristas fosse dirigido pelos comunistas. A AP, por um
voto de diferença, fazer o presidente da APES, numa eleição em que fiquei como
vice-presidente. Luiz Freire foi eleito presidente. Por sinal, hoje ele é um
militante do PCB em São Paulo. Mas logo depois de eleito presidente da APES
Luiz Freire, por motivos de ordem pessoal, se afastou e assumi a presidência da
entidade. Então, fui presidente da APES no período mais difícil de sua
clandestinidade e passei a APES a um sucessor ligado ao partido também. Isso
foi em 1967, quando passei para a Universidade. Então, Luciano de Almeida ficou
controlando aquele trabalho que já não tem para o PCB, pois já estávamos na
dissidência, no PCBR, partindo para a luta armada, mas esse negócio de dizer
que foi a AP que começou a luta contra a ditadura no Rio Grande do Norte não é
verdade. A AP era porta-voz das posições mais à esquerda, daqueles que
rejeitavam a participação no processo eleitoral. Nós sempre tivemos uma posição
para entrar no MDB, apoiar uma candidatura a deputado federal e estadual,
principalmente no caso do deputado Roberto Furtado. Mas não foi a Ação Popular
que teve esse papel de vanguarda. Esse papel era do PCB, até porque era a
organização que tinha mais história no Estado, que existia além de Natal (Em
municípios como Macau, Areia Branca, Ceará-Mirim, Canguaretama), nós participamos
do trabalho de reestruturação do partido. Nós fazíamos circular clandestinidade
no Rio Grande do Norte o Jornal “Voz Operária”, órgão central do PCB. Tínhamos
aqui, ajudando na reorganização do partido,o camarada Pereira – hoje eu posso
dizer o nome dele – Francisco Pereirra, cujo nome de guerra era “Renato”, uma
figura importante para reconstruir o PCB no RN. Ele é dirigente do partido no
Ceará e integrante do Comitê Central. Nesse período, por sinal muito rico, em
que o partido teve um afluxo de novas pessoas ligadas ao movimento cultural ao
Cine Clube Tirol e que estavam retomando a organização do movimento
secundarista e universitário. Foi a época em que Hermano Paiva, Jackson Martins,
William, Gileno Guanabara, voltando ao partido, eu ingressei no partido, Emanoel
Bezerra, que depois foi assassinado em Recife pelo DOI-CODI, o Luciano de
Almeida, José Rocha Filho, “Kerginaldo”, Ivaldo Caetano, Manoel Duarte, o Manú
(líder do movimento comunitário em Natal). Nos tínhamos as principais
lideranças do movimento estudantil, inclusive companheiros da maior
importância, como o Laerte Rocha, de engenharia, que morreu de forma trágica e
prematura.
E
a influência no DCE era fundamentalmente nossa. (A entrevista de Juliano
Siqueira continuará na próxima edição. Os leitores que se preparem, pois virão
muitas novidades por aí). Matéria publicada no extinto semanário DOIS PONTOS, de Natal/RN.
Entrevistas
Em 1992, publiquei uma entrevista com o falecido militante do PC do B, Glênio Sá, natural de Caraúbas/RN, no jornal Tribuna do Norte, mas a reportagem foi escrita em 1986, na redação do mesmo jornal. Abaixo, a matéria original, na base do pingue-pongue, isto é, perguntas e respostas.
R – O PC do B vai apoiar o candidato Geraldo
Melo, do PMDB, ao governo do Estado?
Glênio – Neste final de semana tivemos uma
reunião do partido sobre o assunto, mas ainda não houve o fecho geral.
Segunda-feira, dia 5, conversamos com Geraldo Melo e a coisa evoluiu para uma
coligação, essa é a tendência natural pela análise política que fizemos. A
decisão vai ser soberana, a partir das informações que trago dos companheiros.
R - Você defende o direito a voto para o
jovem de 16 anos. Por que?
Glênio– Achamos que a juventude está mais
consciente de suas necessidades específicas, que os jovens sentem e só eles
podem batalhar. Então, é uma forma de assegurar sua participação efetiva na
política. O grau de insubordinação da criança de hoje já é um indicativo do
desenvolvimento que está existindo.
R – E as conversações com outras forças de
esquerda?
Glênio- Estamos encontrando dificuldades em
discutir com determinadas forças de esquerda, do ponto de vista político. Para
nós, só se forja a verdadeira união do povo com lutas pela base. As propostas
sectárias, fechadas que não ajudam a ampla união do povo e dificultam o
entendimento. Nós combatemos todas as manifestações de oportunismo de esquerda
e de direita.
R – Está havendo abuso do poder econômico na
campanha?
Glênio – Isso já era previsível. Dentre os
candidatos á constituinte, o nome de Flávio Rocha é o que está mais na boca do
povo.
R – Como o PC do B vê a questão do
homossexualismo? Os homossexuais podem ingressar no PC do B?
Glênio – Rapaz, essa é uma questão em debate.
No meu tempo de formação de partido, não considerávamos os homossexuais como
pessoas normais, do ponto de vista genético, e de desvio sexual. Isso com todo
respeito que mantemos com as pessoas em si, do seu caráter, como também
condenamos a forma de tratamento que dá a sociedade, que simplesmente
marginaliza essas pessoas e outros setores. O processo seria simplesmente
fechado. Muitos setores do partido estão debatendo a questão, se entra ou não
entra. Achamos que nas fileiras partidárias hoje, com o partido na legalidade,
eu estava falando da época repressiva, quando a repressão procurava todos os
dados para explorar, nas torturas, no sentido de denegrir essas pessoas, que se
sentem psicologicamente marginalizadas e inferiorizadas e aí poderiam ser
utilizadas pela repressão. Então, a gente era mais exigente nesse ponto, hoje é
uma questão em debate. Eu creio que não é uma questão concluída, mas consideramos
que predomina uma visão científica,que isso é um desvio natural.
R - E a participação da mulher?
Glênio – A mulher sempre teve muita força e
espaço dentro do partido. Na última reunião nacional, tivemos representações de
todos os Estados e territórios e a questão da mulher foi muito debatida. Nós
jogamos dentro das entidades de massas uma política voltada para o
fortalecimento de uma proposta que não veja a questão participativa da mulher
em si, mas a participação da ideologia da classe operária. Nós fazemos uma
diferenciação de determinados movimentos que não fazem nenhuma distinção entre
uma mulher burguesa exploradora e a mulher proletária, que é a grande maioria
das mulheres brasileiras.
R – como você ingressou no partido?
Glênio– Ingressei em 1968, quando participava
ativamente do movimento secundarista em Fortaleza – Ceará. Fui uma das
lideranças do Centro dos Estudantes Secundários do Ceará e entrei em contato
com materiais e lideranças do PC do B. foi a primeira experiência marcante e
hoje é de muita honra, pois ajudou-se bastante a ter mais produtividade no
trabalho organizado e de encaminhamentos coletivos, a ver que era a melhor
maneira de defender os interessados nacionais e a classe operária.
R – O PCB chegou a convidá-lo a ingressar no
partido?
Glênio– Não, mas tive contatos com algumas
pessoas. Naquela época, o movimento estudantil estava no auge. Tínhamos tido um
grande golpe, com a experiência de 64, quando o PCB perdeu muito espaço devido
a sua teoria meio ôba-ôba, pois antes do golpe militar dizia que já estava no
poder João Goulart. O PCB não preparou seus militantes e depois do golpe de 64
jogou um despreparo total. O golpe, que estava em preparação, pois foi
alertado, pegou o partido sem forças suficientes, com poucos membros. Essa
experiência negativa fez com que refletíssemos na ascenção do movimento
estudantil de 68, com muito pouca adesão e simpatia para o PCB. Naquela época, o PCB tinha pouca influência.
Talvez devido a isso e às minhas posições, nunca fui convidado a entrar no PCB,
além do fato de eu já ter uma posição bem definida.
R – Como foi a sua experiência no PC do B, no
Ceará e a sua participação na guerrilha do Araguaia?
Glênio - A minha vivência partidária, antes
de participar da guerrilha, foi no movimento estudantil. O meu destaque maior
foi ser líder secundarista, em 68, 69 e inicio de 1970.
R – Após o AI-5?
Glênio – Inclusive após o AI-5, fomos a única
força organizada em Fortaleza, que chegou a ir às ruas contra o aumento das
passagens dos ônibus. Quando foram cortados os restos de liberdade no país,
conseguimos realizar exitosamente uma manifestação pública, com falações e
tudo, na praça do Ferreira, centro de Fortaleza, mas também com muita repressão
e eu quase levava cacetadas da polícia.
Fui
preso, por conta do meu trabalho em Crato, onde estava em contato com entidades
secundaristas, em nome do CESC. Apesar de não terem conseguido nenhuma acusação
e prova, passei dois meses preso, só porque tinha falado contra o governo numa
reunião com os membros do Centro Estudantil do Crato.
R – Em abril de 1972 você foi para o Pará
participar da guerrilha promovida pelo PC do B?
Glênio – Em 1968 o partido lançou o documento
“Guerra Popular-Caminho da luta armada no Brasil”, elaborado pelo Comitê
Central. Esse documento, a nível teórico, combatia os desvios de esquerda, os
grupos armados que atuavam nos grandes centros urbanos, o foquismo e as idéias
de Regis Debray, Che Guevara, as interpretações errôneas da revolução cubana.
Nós fizemos um combate cerrado contra esses desvios, teorias liquidacionistas
que não mostravam o trabalho organizado como de importância e sim os grupos
armados na condução da luta revolucionária. O partido travou essa luta e
apontou a necessidade de intensificar o trabalho com a massa camponesa. As
revoluções da 6 Conferência, em 1966, nos orientavam para o trabalho de
auto-defesa. Após o AI-5 e a intensificação do fascismo, intensificamos esse
trabalho no campo e fui para o Araguaia, como conseqüência de uma pessoa que exigia
do partido a prática daquelas decisões.
R – Por que escolheram a região do Araguaia?
Glênio – Em junho de 1970 fui realizar um
trabalho com os posseiros e vi que a região seria importante para abarcar e
acolher os nossos militantes mais perseguidos nos movimentos urbanos de São
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e capitais do Nordeste. No sul
do Pará, essas pessoas não teriam uma repressão direta de regime militar. A
importância militar daquelas regiões era grande porque ofereciam uma retaguarda
segura para a direção do partido e havia ausência da Polícia Militar. A repressão era mínima, insignificante nas
áreas de posses do Pará. Devido ao abandono geral dessas regiões e a
possibilidade do governo considerar “área pioneira de colonização”, o projeto
da transamazônica, e, a gente sabia que ali seria muito habitado. O próprio
Jarbas Passarinho reconheceu a importância militar, pois a regiões era de
difícil repressão por parte das forças armadas do Brasil, tanto de gastos de
deslocamentos de tropas como a questão de nossa preparação do local, onde a
gente tinha o domínio, toda a retaguarda
de selva, numa extensão de mais de seis mil e quinhentos quilômetros quadrados.
R – Você esteve em São João do Araguaia?
Glênio – Sim. Fui um dos primeiros a chegar,
em junho de 70, na região do Gameleira, onde nós começamos a plantar, construir
casas e se entrosar com os moradores. Fomos os desbravadores de lá, plantando
arroz e milho. Enquanto nos auto-sustentavámos, íamos preparando o terreno, em seis
localidades. Formou-se o “Destacamento B”, ao qual pertenci durante o processo
de luta.No Gameleira, tínhamos três roças que preparamos para os companheiros
que chegariam. Era uma região que tinha gente de todo canto, principalmente
nordestinos, acossados pelo latifúndio, falta de terras, de água, disso e
daquilo. Era uma região de muitos aventureiros, de pessoas de muito
desprendimento. No primeiro instante, tivemos a humildade de aprender com a
massa para dominar a região. Através da caça e dos processos de sobrevivência
na selva amazônica. Tudo isso foi a massa que nos ensinou, os posseiro e
moradores.
R – Qual era a população da região?
Glênio – Vinte e mil pessoas.
R – A guerrilha do Araguaia dá um livro. Fale
resumidamente sobre o seu batismo de fogo.
Glênio – O nosso destacamento foi um dos que
evitaram mais o contato direto com a repressão. A minha experiência militar que
você coloca aí foram algumas ações de fustigamentos, esparsas, que não deram
para saber os resultados. Diria até que não deixa de ter o seu significado
diga-se de passagem que isso não foi um movimento de iniciativa nossa, foi uma
coisa abortada, certo? - mas entramos
num processo de auto-defesa, fomos reprimidos, apesar do trabalho ser o mais
camuflado e clandestino possível com os componentes da área. Aí....
R – O Exército descobriu e foi lá...
Glênio – Exatamente. Não foi de iniciativa
nossa. A gente não ia de livre espontânea vontade entregar-se. Com o grau de
organização que tínhamos, a condições de conduzir e tínhamos outras áreas de trabalho
que não funcionaram (a gente não trabalhou somente no Araguaia, mas no
Maranhão, Goiás e Mato Grosso, áreas que poderiam se integrar ao processo de
luta). Infelizmente, não funcionaram. No geral, a experiência do Araguaia, apesar
de todas as debilidades e da repressão que se abateu sobre os centros urbanos,
em especial sobre o nosso partido e os grupos radicais de luta armada, mostrou
que éramos os mais preparados para enfrentar a repressão. Pelos dados oficiais
das forças armadas, o processo de luta durou três anos. Enfrentamos mais de 20
mil homens armados, uma força equivalente á Força Expedicionária Brasileira na
Segunda Guerra Mundial, com especialistas em guerrilhas de Portugal, de
americanos que lutaram na Guerra do Vietnam, equipamentos sofisticados
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Estava tão despreparada assim, tínhamos
armamento arcaico, comprados na região, com o nosso suor, na base de espingardas
44, revólveres 38. Eu tinha um armamento calibre 16, de cartucho, para
enfrentar fuzis FAL, metralhadoras modernas, helicóptereos, napalm. Chegaram a
matar quebradores de cocos, confundidos com a gente. Eu diria que foi uma
experiência do partido e não baixo a cabeça frente ao processo repressivo da
reação. Elogiamos a capacidade da
repressão do regime, em não ter subestimado o movimento, de ter cortado todo a
comunicação com a região, de ter silenciado todos os jornais do país. A
repressão achava que qualquer notícia a respeito a guerrilha poderia ter um
efeito desbravador. Apesar de todo esse alcance, nós vimos que as nossas
conquistas foram grandes. A guerrilha foi a única chama acesa em defesa da
liberdade no país, quando parecia que tudo estava extinto.
R – Durante a guerrilha morreu muita gente,
não é verdade? Contam que morreram 1.500 militares e 2 mil civis, inclusive o
pessoal do PC do B.
Glênio – Esses dados me parecem exagerados.
Os dados que eu tenho é de 59 mortos e desaparecidos do partido e mais 20 ou 30
da massa, pois não tivemos controle direto sobre essas mortes e
desaparecimentos.
R – Você não falou em bombardeios aéreos, com
bombas de Napalm?
Glênio – Aí é onde está. Eu não tenho a
extensão, mas vamos dizer que tivemos 70 ou 80 mortos, por exemplo, do nosso
lado e da população, certo? E que tenha havido mais uns 20 ou 30 ou mesmo 50 da parte da população, que a gente
não tenha tomado conhecimento. Assim mesmo, acho bastante exagerado chegar a um
cálculo de 1.500 pessoas mortas, pois nós e a população era uma coisa só, as
coisas estavam entrelaçadas. Da parte do Exército, a gente não tem um controle
muito grande, mas acho que não passa disso, em termos de mortes. Primeiro,
porque a gente não teve essa ofensividade toda, não teve a quantidade de
emboscadas com a finalidade de dizimar o Exército. Aconteceram choques entre a
Polícia Militar e o Exército, entre o Exército e a Aeronáutica. Houve mortes na
população civil, que não estavam em nenhum lado, como o caso dos quebradores de
cocos, que foram bombardeados com napalm, de forma irres------ram em lagoas
cobertas com vegetação, pensando que era terreno firme e morreram afogados.
Chegaram a jogar bombas bem pertinho da gente.
R – Quais as principais divergências
ideológicas do PC do B com o PCB? É verdade que vocês não se falam?
Glênio – Não. Eu não diria que não
conversamos. Pessoalmente, como dirigente do PC do B tenho conversado com
vários dirigentes deles, dirigentes declarados do partido e dirigentes
sindicais, nas frentes estudantis e comunitárias. No meio desse trabalho, a
gente conversa de pessoa para pessoa. Agora de partido para partido, nós temos
uma demarcação muito grande e aí realmente travamos uma luta muito grande, não
só contra o PCB, mas contra as forças e formas oportunistas né? Que atuam no
movimento operário e popular. As nossas divergências não são de hoje. O Pc do B
travou nas suas fileiras uma luta ideológica de grande porte, entre 58 e 61,
quando as divergências principais, a
aceitação das teses revisionistas do Partido Comunista da União Soviética, a
introdução do Kruchovismo, as teses de era possível a construção do socialismo
lá, denominado só em palavras, como
“Partido de todo o Povo”. “Estando de todo o Povo” , etc, acabando com o
espírito socialista do inter- nacionalismo proletário e que se refletiu,
particularmente, em 61, com a criação do Partido comunista Brasileiro, que não
foi uma simples mudança de nome. Foi tirado dos seus estatutos a condução
marxista-leninista desse partido, desprezando o internacionalismo proletário.
Os verdadeiros marxistas-leninistas, como João Amazonas, Mauricio Grabois,
Pedro Pomar, José Duarte e Elza Monerate, entre outros, aglutinaram o que
puderam, apesar do boicote de Prestes, reorganizarem e definiram os estatutos
do partido a altura das tradições revolucionárias.
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